Actos Autorizativos
Poderá a actividade de
um particular devidamente autorizada, legalizada através de um acto
jurídico-público de entidades administrativa, no uso de funções
administrativas, lesiva de direitos ou posições jurídicas de terceiros, ser
considerada como ilícta (nomeadamente à luz de outros ramos de direito) ou
permitir aos terceiros lesados um ressarcimento pelas lesões provocadas?
Numa primeira abordagem
desta matéria cabe apreciar todos os efeitos desencadeados por um acto
administrativo permissivo. O efeito essencial e que acaba por trazer consequências
a outros níveis é o efeito legalizador, ou seja, a transformação de uma
actuação ilícita em lícita, desligando a causa justificativa da ilicitude.
Deste efeito decorre, como seria de esperar um efeito conformador do Direito
Privado, quer ao nível do Direito Civil, quer ao nível do Direito Penal. De uma
forma simples, o Direito Administrativo passa a ser o Direito ordenador de
outros ramos do Direito (efeito irradiante), passa a exercer uma força
superior. O Direito Administrativo passou a regular em medida crescente, por
exemplo, o direito de emitir fumos, produção de resíduos - artigos 1346º e
1347º do C.C. prescrevendo normas específicas quanto à responsabilidade. A
criação de um direito contra-ordenacional em materia Penal (Direito Penal
Primário), permite à Administração tomar decisões concretas com a margem de
discricionariedade que lhe é típica.
Faltando a ilicitude da
actividade, estarão vedadas as possibilidades dos terceiros lesados agirem de
forma judicial perante os particulares, por não estarem verificados os
pressupostos individualizadores das normas que legitimam actuações coactivas
(acções do tipo inibitório), existindo, desta forma, um efeito preclusivo.
Um último efeito a
apontar será o efeito vinculativo do acto perante autoridades terceiras. Estas
autoridades terceiras devem considerar como um pressuposto o acto
administrativo eficaz da outra autoridade, não adoptando comportamentos ou
decisões que o contrariem. Faz sentido que se chame, nesta sede, à colação a
força de caso julgado material também como forma de garantir segurança jurídica
ao particular e o princípio da separação de poderes.
Cabe agora apreciar
qual a solução a dar quando perante uma ordem jurídica, nomeadamente a administrativa,
uma actividade é lícita e perante o outra (Direito Civil) será considerada
ilícita?
Esta problemática
aponta para a necessidade de harmonização entre o Direito Administrativo e
outros ramos de Direito. As várias ordens não deveriam entrar em rota de
colisão. Cada ordem jurídica tem tarefas diferenciadas e não é possível aceitar
a “subordinação” do Direito Civil e Penal ao Direito Administrativo.
O efeito erradiador do
Direito Administrativo está longe de obter unanimidade na doutrina e na
jurisprudência.
Os adeptos da Teoria da
Unidade da ordem jurídica dizem que o conceito de ilicitude não pode ter
valorações diferentes nos vários ramos jurídicos dentro de uma mesma ordem
jurídica.
Quanto a mim, o que me
parece estranho é que os defensores desta teoria não tenham feito uma distinção
prévia entre previsão (Tatbestand ilicitude) e Estatuição, julgando ambos da
mesma forma. O conceito de ilicitude permanece, estável nos vários
ordenamentos, o que muda são os resultados jurídicos que se visam obter. Para
tornar mais claro, aquilo que se busta com o conceito de ilicitude no Direito
Penal é diferente do que se busca no Direito Civil.
Mas se a ilicitude é
invariante, teremos que admitir um efeito irradiante.
Os adeptos da teoria da
ilicitude indiferenciada referem expressamente que uma causa justificativa que
diga respeito a um determinado ramo jurídico só vale se inserida nesse
contexto. Em suma, para estes autores não temos efeitos irradiantes.
Poderíamos pensar que
tínhamos o problema resolvido. Contudo, apesar de não haver irradiação será que
podemos admitir que sendo licito perante uma ordem jurídica esse acto possa ser
atacado por outras ordens? A resposta a esta questão parece clara: Obviamente
que não. Contenderia com vários princípios jurídico-constitucionais.
Precisamos de outra
solução. Numa situação de concorrência dentro do mesmo ramo e segundo uma
Teoria da Concorrência a norma de justificação prevalece sobre a norma de
ilícitude. E no caso de duas ou mais ordens em conflito? Temos de ter em conta
que há coisas que não nos podem escapar, tais como a protecção da confiança,
muitas vezes perturbada pela concorrência de normas.
O professor Gomes
Canotilho[1]
aponta uma possível solução. A norma de justificação prefere à norma de
ilicitude se e na medida em que a norma de justificação estabeleça claramente
os pressupostos conducentes à exclusão da norma de ilicitude. Em suma, só há
justificação se não existir ofensa aos princípios básicos constitucionais.
De seguida, cabe
apreciar os pressupostos constitucionais. À partida, seria inconstitucional um
sistema legal conformador que fosse indiferente ao ressarcimento de danos. O
facto de um acto permissivo desencadear um efeito preclusivo não significa que
haja preclusão do direito à compensação de sacrifícios.
Os Direitos Fundamentais
devem ser vistos como limites ao acto administrativo. O efeito justificativo
poderá excluir a ilicitude mas não compensa o sacrifício dos direitos fundamentais
dos particulares. Os DF são princípios materiais impositivos que obrigam o
Estado a precaver-se quanto a actos permissivos, assumindo uma “espécie” de
responsabilidade perante eventuais lesões aos DF.
A reserva de lei em
matéria de restrições impõe que seja um lei, e só ela a recortar com interesse
primário o desenvolvimento económico, receitas fiscais, postos de trabalho e
impor restrições aos DF – artigo 18º e 168º da CRP. No entanto, a autorização
que confere efeitos preclusivos tem de ser adequada à prossecução de fins
constitucionais e neste sentido é imperioso provar a aptidão, a necessidade e a
adequação.
A proibição do excesso
e uma ideia de proporcionalidade também deve ser apreciada para julgar a
bondade desta solução. Somos tentados a afirmar que a necessidade deixará de se
verificar quando resultarem sacrifícios ou encargos de particular gravidade
para os terceiros.
Atendendo à ideia de um
princípio do procedimento justo, artigo 52º CPA, aos terceiros lesados é
necessário assegurar o direito de participação.
Podemos concluir que em
face do Direito Constitucional teríamos que admitir uma compensação pela lesão
de direitos dos terceiros.
Apesar de tudo o que em
cima ficou expresso o facto é que o efeito legalizador não é extensivo a toda e
qualquer autorização mas apenas a algumas espécies de procedimentos autorizativo-conformadores
em que um acto administrativo de autorização assume as vestes de um acto
constitutivo de conteúdo conformador em que os terceiros verão precludidos os
seus direitos de acção de defesa, mas não de acção de indeminização.
Estes actos não estarão
sujeitos a um controlo permanente, não terão de estar em consonância com os novos
conhecimentos científicos e com as modificações legislativas?
Ao
acto administrativo deve ser retirada alguma estabilidade em favor de
procedimento dinâmico, justificado por necessidades de adaptação permanente a
novas circunstancias, exigências de prevenção de perigos só revelados depois da
entrada
em funcionamento de determinado estabelecimento[2].
O
uso de uma licença anacrónica é ilícita quando o seu titular conheça a
ilicitude do comportamento traduzido na causação de danos graves e por vezes
irreversíveis.
O efeito justificativo
só se deve verificar quando o acto adquirir estabilidade definitiva seja pelo esgotamento
de vias de impugnação, ou porque sobre ele incidiu uma sentença com transito em
julgado confirmando a sua legalidade artigos 162º a 168º do CPA.
Acrescentar, ainda, que
o efeito preclusivo termina quando não existe conformidade entre a autorização
e o estabelecimento autorizado, quer porque o particular alterou os seus planos
quer porque ele não observou as condições que acompanhavam o acto autorizativo.
Também não existirá efeito preclusivo se o acto foi praticado sob reserva de
negação e ainda quando a actuação do destinatário do acto for fora ou contra a
autorização, esta não pode estar legalizada pelo acto administrativo da
entidade competente – causas de infração.
Será que podemos
responsabilizar o Estado pela lesão sofrida na esfera de terceiros em virtude
de um comportamento de um particular que actuou ao abrigo de uma licença? A
única forma de responsabilizar o Estado seria por actos lícitos recorrendo à
teoria do sacrifício[3]
através de uma transferência da responsabilidade dos Particulares para o Estado.
Todavia, o instituto do sacrifício, colocará agora com toda a acuidade a
questão apurada pelos economistas e que se prende com o princípio do poluidor
pagador. No limite poderíamos estar a admitir que o princípio do poluidor pagador[4] se
estaria a converter no princípio do Estado Pagador.
E, em boa verdade, não
existe um acto de poderes públicos dirigidos à ablação de posições jurídicas
encaixadas no âmbito de direitos fundamentais.
A única forma de fazer
operar a responsabilidade do Estado por factos lícitos estará pensada,
sobretudo, para os casos em que as várias actividades desenvolvidas se destinam
a satisfazer finalidades públicas.
Procurando por
respostas no Direito positivo facilmente acabamos por concluir que a
responsabilidade terá de ser atribuída aos particulares artigos 1347º nº2 C.C.,
41º e 40º nº 5 e 6 LBA.
Numa fase posterior
cabe determinar quem será o benificiário desta compensação. Os escritos mais
remotos apontam para a ideia de proprietário vizinho, mas esta ideia parece ser
demasiado restritiva e incompatível com as necessidades actuais. De abraçar
será o conceito de vizinho ambiental que abarca, dentro de um universo amplo,
apenas as pessoas que apresentem um contacto mais intenso e permanente com o
estabelecimento poluente. Esta delimitação dos lesados terá de articular-se com
a própria individualização dos bens protegidos.
Será que todos os bens
jurídicos são objecto de indemnização? Uma Teoria clássica que aponta para a
noção de proprietário vizinho defende que apenas o direito de propriedade (bem
materiais) seria objecto de indemnização. Mas, mais uma vez, esta noção é
insuficiente e pode ter consequências nefastas. Hoje este conceito terá de
abarcar os bens imateriais como a qualidade de vida e o ambiente previstos no
artigo 66º da CRP.
Será que podemos
incluir, nesta compensação, os danos ambientais? Podemos incluir as perdas e
prejuízos do ambiente e da qualidade de vida desde que eles não estejam já incluídos
nos círculos anteriores e desde que se limitem a indemnizar os custos
efectivamente pagos e as medidas de recuperação ecológica.
O próprio resultado a
que chegámos é fruto dos próprios efeitos justificativos e preclusivos do acto administrativo
e tem como última ratio a garantia da segurança e da confiança aos terceiros
que de outra forma estariam completamente desprotegidos atendendo ao crivo do
efeito legalizador do acto administrativo permissivo.
[1] Boletim
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LXIX, 1993
[2] As leis
alemãs admitem expressamente a imposição superveniente de clausulas alternadas
ou complementares da autorização e limitativas da protecção da estabilidade do
acto autorizativo do estabelecimento comercial.
[3] Um outro
problema é que a ideia geral desta teoria é que ela visa o ressarcimento de danos
provocados directamente pelo Estado o que não se verifica na hipótese.
[4]
Internalização das externalidades
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