Resumo e Comentário – Acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de
Julho de 1992
Para a análise deste acórdão
será necessário abordar uma outra questão prévia, não raras vezes, levantada
pelos Estados-Membros[1] e
que se prende com a indefinição do conceito de resíduos[2],
presente na Directiva 75/442/CEE[3].
Esta questão não é de
todo irrelevante, a sua polémica prende-se muitas vezes com as consequências jurídicas
de tal classificação, na maior partes das vezes um regime especialmente
oneroso, com obrigações de registo de entidades, autorizações prévias de
actividade e circulação condicionada entre Estados-Membros[4].
Qual então a noção
comunitária de resíduo? O artigo 1.º alínea a) verbaliza: “Resíduos: quaisquer
substâncias ou objectos abrangidos pelas categorias fixadas no Anexo I e de que
o detentor se desfez ou tem a intenção ou obrigação de se desfazer. Se
dissecarmos esta noção percebemos que ela é composta por um elemento objectivo
(reconduz-se à remissão para a lista de categorias de resíduos presente no
anexo I) e um elemento subjectivo (corresponde à forma reflexa do verbo
desfazer[5]).
Ainda quanto ao elemento subjectivo que a lei define como acto, intenção ou
obrigação de se desfazer, é precisamente a segunda que mais problemas tem
levantado. Acrescentar ainda que este cenário é claramente perceptível se
tivermos em conta que a directiva dá uma definição de “resíduo”, “produtor”, “gestão”,
“eliminação”, “aproveitamento” e “recolha” omitindo sempre as noções de “matéria-prima
secundária” e “desfazer-se”!
Quanto ao elemento
objectivista temos autores que acreditam ter terminado as divergências
interpretativas e outros que consideram o Anexo excessivamente vago. Na minha
opinião teremos de nos situar num ponto intermédio na medida em que é facto que
as divergências sobre estas matérias não terminaram. A prova disso é que a
Comissão foi forçada a admitir que o facto de determinada matéria figurar no
catálogo não é sinónimo de resíduo sem que antes satisfaça a própria noção. Não
estará a Comissão a admitir que o catálogo não serve para nada? No limite
teremos sempre de verificar se cumpre a noção prevista no artigo ou não.
Quanto ao elemento
subjectivo. Já vimos que ele tem de ser analisado em 3 vertentes:
- Substâncias que o
detentor se desfaz. Esta hipótese pressupõe que o detentor já se desfez da
substância pelo que o que nos resta analisar é se o fez em moldes compatíveis
com a regulamentação aplicável;
- Substâncias que o
detentor tem obrigação de se desfazer. É algo que se impõe de forma imperativa
sendo irrelevante o seu eventual valor económico;
- Substâncias ou
objectos de que o detentor tem intenção de se desfazer. Esta hipótese é
sobretudo psicológica e prende-se com o animus donandi, com um elemento
volitivo. O problema esta em averiguar essa vontade quando exista valor
económico. Neste campo temos divergências doutrinárias entre os subjectivitas[6] e
objectivistas[7].
Os subjectivistas
definem um resíduo como algo que se destina à eliminação e por isso não veem
qualquer diferença entre resíduo e matéria-prima secundária se não quanto ao
seu destino.
Os objectivistas
consideram o resíduo como algo afecto a um fim diferente. Desfazer-se é pois
mudar o fim económico da coisa. Por isso ele pode ser eliminado ou até mesmo
aproveitado.
Numa análise crítica
sou levada a concordar com a teoria objectivista. Adoptar uma posição
subjectivista seria estar a admitir que só o que é eliminado é susceptível de
causar danos ao ambiente. E, como já foi referido pela Comissão, a expressão
“desfazer-se” deve ser interpretada tendo em conta o objectivo da Directiva,
que nos termos do seu considerando, é a protecção da saúde humana, do ambiente
contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e
depósito dos resíduos[8]. Devo
adiantar desde já que o mesmo entendimento tem sido adoptado pelo Tribunal de
Justiça da União Europeia[9].
Outro acórdão[10]
interessantíssimo do ponto de vista pedagógico e que esclarece o conceito de
resíduos é o que opõe a Paul Granit e a Associação de Municípios ao Korkein
hallinto-oikeus. Sendo que depois este último remeteu o caso para o TJUE a fim
de concretizar o artigo 1º alínea a) da Directiva 75/442.
A Paul Granit terá
pedido uma autorização em matéria de meio ambiente para instalar uma pedreira
de granito e a Associação de Municípios terá concedido esta autorização.
Acontece que na legislação finlandesa a competência para conceder autorizações
de meio ambiente no que respeita a resíduos é da competência de um Centro de
Meio Ambiente. Consequência: a decisão da Associação de M. foi anulada. As
partes vêm recorrer desta decisão alegando que a pedra residual resultante da
extração e que se calculava em cerca de 50 0003 por ano que seria
armazenada em local confinante não se tratava de um resíduo.
Argumentos usados pelo
advogado do demandante[11]:
1-
A intenção declarada: A gravilha de
granito era vista como um subproduto do processo de produção principal e a
intenção subjacente à sua produção é a comercialização. O destino pretendido
era o da valorização e não da eliminação[12].
2-
A natureza da substância: invoca a
identidade físico-química da gravilha tanto relativamente ao produto principal
como ao local onde é extraído, a natureza humanamente não transformada da
substância, o seu carácter reciclável e a inexistência de perigos para a saúde.
3-
A utilidade comercial da substância: se
tem valor económico provavelmente vai ser reciclada.
4-
Operações de gestão a que a substância é
sujeita: armazenamento temporário.
O TJUE depois de
apreciar as questões acaba por concluir que a pedra extraída e armazenada é
considerada um resíduo na aceção do artigo 1º da Directiva. Chama à colação a
finalidade da directiva para concretizar o termo “desfazer-se”, acrescenta
ainda que pode englobar substâncias susceptíveis de reutilização económica e de
aproveitamento responsável para o ambiente sem tratamento radical sendo que o
impacto do tratamento dessa substância não tem incidência determinante sobre a
qualificação como resíduo, e diz que o facto de estarmos perante uma resíduo
reutilizável não subtrai essa substância ao objecto da Directiva. O depósito e
armazenamento de quantidades consideráveis de pedra residual implicam,
manifestamente, risco de poluição, através das peeiras, ruídos e dano na
paisagem. O tribunal acaba por considerar irrelevante o local de armazenagem.
Uma vez que o critério essencial para proceder à qualificação como resíduo é
precisamente o animus de se desfazer dele. Afastou a ausência de transformação
como característica relevante porque também os resíduos de produção primária da
agricultura, horticultura, caça, pesca e da preparação e processamento de
produtos alimentares são resíduos “naturais” e mesmo assim resíduos.
Feita que está toda
esta abordagem inicial penso que estamos prontos para analisar o Acórdão do
Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 1992.
Este processo opõe a
Comissão das Comunidades Europeias (demandante) ao Reino da Bélgica (demandado)
e tem como objectivo provar que determinada norma, presente no ordenamento Belga,
não é conforme com a Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1975,
relativa aos resíduos, com a Directiva 84/631/CEE do Conselho, de 6 de Dezembro
de 1984, relativa à vigilância e ao controlo na Comunidade das transferências
transfronteiras de resíduos perigoso, e ainda com os artigos 30 e 36 do antigo
Tratado da CEE.
A norma presente em
Regulamento[13]
tinha o seguinte teor:
Artigo 1.º “ É proibido
armazenar, depositar ou vazar e mandar armazenar, depositar ou armazenar
resíduos provenientes dum Estado estrangeiro[14]
nos depósitos, entrepostos ou locais de descarga de resíduos sujeitos a
autorização … com excepção dos depósitos em anexo a uma instalação de
destruição, de neutralização de e eliminação dos resíduos tóxicos. …”
O artigo 2.º do mesmo
regulamento prevê que podem ser concedidas derrogações do artigo 1.º, a pedido
duma autoridade pública estrangeira. A derrogação só pode, todavia, ser
concedida por tempo determinado e deve ser justificada por circunstâncias
graves e excepcionais.
Quando à Directiva
75/442
O tribunal considerou
que nenhuma das disposições previstas na Directiva, acima indicada, visavam
especificamente as trocas comerciais de resíduos entre Estados-Membros e não
continham qualquer proibição concreta de adoptar medidas como as instituídas
pelo Regulamento sob censura. O argumento seria improcedente.
De facto, a Directiva
em questão apenas se limitava a introduzir comandos operativos dirigidos aos
Estados no sentido de adoptar medidas para a prevenção, reciclagem e
transformação dos resíduos tal como o dever de designar autoridades competentes
em matéria de planificação, organização, autorização e fiscalização das
operações de eliminação dos resíduos.
Ao contrário do que foi
sustentado pela comissão, esta Directiva não tinha em vista a livre circulação
dos resíduos e sim a necessidade de cada Estado-Membro proceder a medidas
destinadas à transformação dos resíduos. Assim,
a directiva obriga os Estados-membros a constituírem uma rede integrada e
adequada de instalações de eliminação que permita, tanto à Comunidade no seu
conjunto como a cada Estado-membro, assegurar a eliminação dos próprios
resíduos na instalação mais próxima (artigo 5.º). Para realizar estes
objectivos, os Estados-membros estabelecem planos de gestão de resíduos e podem
proibir a circulação de resíduos não conformes com esses planos (artigo 7.º).
Finalmente, a directiva obriga os Estados-membros a sujeitarem as empresas e
estabelecimentos de eliminação ao regime de autorização, registo e fiscalização
(artigos 9.º a 14.º) e confirma o princípio do "poluidor-pagador" em
matéria de eliminação de resíduos.
No artigo 5.º é latente o princípio da proximidade. É imperativo que o
Estado-Membro da produção seja o Estado-Membro da eliminação, a fim de
assegurar que, tanto quanto possível, cada Estado-membro efectue a eliminação
dos seus próprios resíduos.
Nestas circunstâncias, não se pode considerar que a directiva tem por
objecto a execução da livre circulação de resíduos na Comunidade, como a
Comissão, posteriormente veio a admitir[15]. Ela consubstancia antes de mais uma excepção à livre circulação de
resíduos.
Quanto à Directiva 84/631
Esta Directiva tinha como objectivos o controle da eliminação dos
resíduos perigosos, a imposição aos Estados-Membros de adoptar medidas com o intuito
de eliminar os resíduos tóxicos e perigosos e por fim a transferência de
resíduos entre Estados-Membros.
A propósito do último ponto, que é o que nos interessa discutir, esta
directiva “encenou” um procedimento a adoptar para a efectivação das
transferências entre estados:
1º Deve haver notificação às autoridades competentes através de
documentos de acompanhamento que contenham dados sobre a origem, composição,
itinerários, segurança e transporte dos resíduos;
2º A transferência só pode ser efectuada depois do Estado receptor
acusar a recepção da notificação.
Nota: O Estado-Membro tem legitimidade para objectar à transferência, para
tanto deve fundamentá-la tendo por base a protecção do ambiente, da saúde e da
ordem pública.
Neste caso aquilo que o Tribunal entendeu foi que face a esta Directiva
o Regulamento Belga continha uma proibição absoluta de importação dos resíduos
perigosos. Apesar de prever no seu artigo 2.º derrogações a tal proibição não
se percebe muito bem em que termos ela poderá acontecer a utilização de
conceitos vagos e indeterminados de “circunstâncias graves e excepcionais”
afasta-o claramente do que foi enunciado na Directiva.
Quanto aos artigos 30 e 36 do Tratado da CEE
O Tribunal afirma que os resíduos devem ser considerados mercadorias.
No entanto acaba por concretizar um princípio muito importante na medida em que
os resíduos deveriam ser eliminados tao perto quanto possível do lugar da
produção – Princípio da proximidade e da auto-suficiência.
Este princípio muitas vezes
reconduzido à correcção na fonte.
Num sentido
subjetivo, a correção na fonte dos danos ao ambiente redunda na imposição ao
poluidor - enquanto fonte subjetiva ou causador da poluição - o dever de
modificar a sua conduta expurgando-a de ações lesivas ao ambiente ou, quando
tal não seja possível ou não seja exigível, retificando-a de modo a reduzir ao
mínimo as agressões ao ambiente.
Entendendo a
fonte num sentido espacial, a correção implica a proibição de transporte de
produtos nocivos para o ambiente do local onde são produzidos, e onde deveriam
ser reciclados, tratados ou eliminados, para outro local mais ou menos
distante. Neste sentido, o princípio da correção na fonte tem uma especial
aplicação no campo dos resíduos, legitimando restrições à liberdade de
circulação de mercadorias através do encerramento das fronteiras aos resíduos
perigosos provenientes de outros Estados. O princípio da correção na fonte
impede o turismo de resíduos ou por outras palavras a existência de um espaço
Schengen de resíduos.
Parece quase
esquizofrénico que o Tribunal num primeiro momento tenha incluído os resíduos
na categoria mercadorias e no momento seguinte lhe tenha retirado todas as
características inerentes: a sua livre circulação.
Para ajudar a compreender
esta questão Ilona e Michael Purdue afirmam que os resíduos são “uma questão
mais ampla de tal forma que a poluição é sempre causada por resíduos, mas os
resíduos nem sempre causam poluição.
Como tal podemos concluir
que, apensar de o tribunal considerar resíduos como mercadorias, estas devem
estar sujeitas a um regime muito mais rigoroso. O risco inerente a uma má prática
de gestão dessas mesmas substâncias pode trazer consequências devastadoras no
ambiente.
Em jeito de conclusão quero
apenas frisar que apesar de todos os esforços que têm sido feitos na tentativa
de concretizar o conceito de resíduo as dúvidas subsistem e as provas são
claras e não deixam dúvida. Acredito que muito em breve esta situação tenha de
ser revista de forma a clarificar todos os Estados-Membros. Esta é uma matéria
de extrema importância que não pode ser deixada ao acaso ou esquecida de forma negligente.
Há conceitos que têm de ser definidos. A jurisprudência já tem percorrido um
caminho neste sentido. Mas será isto suficiente? Deixo, então, está
interrogação para que todos pensemos neste problema que afecta todos os países
em todo o Mundo: OS RESÍDUOS.
[1] Cfr. a
título de exemplo: Acórdão TJ de 18 de Dezembro de 1997;Acordão TJ C- 206 2
207/88 – Vassoso e Zanetti; Acórdão ARCO; Acórdão do TJ 18 de Abril de 2002;
[2] À qual o
tribunal nega sempre a contraposição, decorrente do senso comum, entre resíduos
e matérias-primas secundárias.
[3] Objecto
do Acórdão em análise
[4] Veja-se
a este propósito a Directiva 84/631/CEE
[5] Reino
Unido “discard”, França “défaire”, Alemanha “entledigung” e na Itália
“disfarsi”
[6] Pasquale
Giampitero, Franco Giampitero, G. Amendola
[7] Jurgen
Fluck, Maria Mancini, Paul de Brucker e Paul Morrens
[8] Seria
importante chamar ainda à colação o artigo 191.º, n.º1 do TFUE que dispõe que a
política da Comunidade no domínio do ambiente tem com objectivo um nível de
protecção elevado que se baseia nos princípios da precaução e acção preventiva.
[9] TJUE de
18 de Dezembro de 1997 “ (…) o conceito de resíduo, na acepção do artigo 1.º alínea
a) da Directiva 75/442, não deve ser entendido como excluindo as substâncias e
objectos susceptíveis de reutilização económica (…)”; TJUE Inter-Environnement
Wallonie vs Conselho Regional do Valão “ (…) o mero facto de uma substância
integrar, directa ou indirectamente, um processo de produção industrial não a
exclui do conceito de resíduo (..)”
[10] TJUE de
18 de Abril de 2002
[11] Também
considerados os argumentos anti-resíduais mais clássicos
[12] Sobre
este argumento já tínhamos visto anteriormente que o tribunal adopta uma teoria
objectivista no sentido de não reconduzir o resíduo apenas à eliminação mas
contém ainda a ideia de reutilização económica.
[13]
Moniteur belge de 28.3.1987, p. 4671
[14] Segundo
o seu artigo 5º “Considera-se proveniente de um Estado Estrangeiro ou de uma
região diferente da Região da Valónia os resíduos não produzidos na Região da
Valónia”
[15] Acórdão
do Tribunal de Justiça de 17 de Março de 1993
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