O toque de Midas arrebita-nos as orelhas
De acordo com a
mitologia grega Midas, Rei da Frígia, foi protagonista de duas das mais
conhecidas lendas da antiguidade.
Reza a história que certo dia Sileno, o mais velho, mais beberrão e mais
sábio seguidor de Dionísio (Deus grego do vinho), se perdeu e foi encontrado a
errar bêbado e perdido pelos campos da Frígia por alguns camponeses que o
levaram, de imediato, à presença do seu Rei. Este decidiu ajudar Sileno a
reencontrar-se com Dionísio que, perante tão generoso acto, decidiu
conceder-lhe um qualquer desejo. Midas, ambicioso e ávido por riquezas,
formulou o seu pedido: desejou ter o poder de transformar tudo aquilo em que
tocasse em ouro. Jubiloso com o seu novo dom depressa o testou e confirmou que,
de facto, tudo aquilo em que tocava se transformava em ouro. No entanto, esta
alegria foi de pouca dura e o que antes lhe parecia um dom começou a parecer-lhe
uma maldição. Era-lhe, agora, negado o toque daqueles que lhe eram queridos, a
comida já não lhe saciava a fome e, no entanto, era o mais rico dos homens. Depressa
se apercebeu do erro que cometera e dirigiu-se de novo à presença de Dionísio
implorando-lhe que retira-se a maldição. Este anuiu ao seu pedido. Desde então
o Rei Midas abdicou de todas as riquezas e tornou-se seguidor de Pã (Deus grego
dos bosques).
Contudo, a história não fica por aqui. Anos depois, o Rei Midas, fora
convidado a assistir a um duelo musical entre Apolo (Deus grego do sol) e Pã,
pois este último afirmava ser mais virtuoso nas artes da música. Apesar de Pã
ter agradado a todos com a sua flauta, este não foi par para Apolo e a sua
lira. Tmolo (Deus grego das montanhas) enquanto júri daquela disputa deu a
vitória a Apolo. Indignado, o Rei Midas contestou a vitória de Apolo e este,
furioso perante a insensibilidade do rei ao que acabara de ouvir, transformou
as suas orelhas em orelhas de burro. Perante tamanha deformidade o rei decidiu
tapar a cabeça e deixar crescer o cabelo e as barbas, até que um dia decidiu
cortar. Chamou um barbeiro e, antes do corte, fê-lo jurar que guardaria
segredo. O barbeiro assim o fez, durante uns tempos, até que o segredo se
tornou insuportável de guardar. Resolveu então gritar o segredo do Rei Midas para
um buraco no chão e enterrá-lo para que ninguém ouvisse. No entanto, um caniço
curvado pelo ventou ouviu e começou a murmurar “O Rei Midas tem orelhas de
burro”. O murmúrio do caniço virou clamor e sempre o vento soprava o segredo do
Rei ouvia-se por toda a cidade. Por vergonha, e arrependido por não ter tido a
prudência e o discernimento dignos de um Rei, Midas lamentou-se até ao fim dos
seus dias.
Dito isto, perguntar-me-ão: em que sentido e de que forma poderão estes
mitos da antiguidade clássica estar relacionados com o Direito do Ambiente na
conjuntura actual? Ao qual eu respondo: tais mitos não podiam estar mais
consentâneos com a realidade vivida actualmente.
De
facto, o Homem moderno em tudo se assemelha ao Rei Midas. A sua ganância e
avareza, aliadas a uma incessante vontade de progresso, levaram-no, e ainda
levam, a corromper e destruir o equilíbrio natural do Planeta Terra. O seu
desejo de progresso (a riqueza que o Rei Midas procurava), possível apenas por
possuirmos o dom da inteligência (o dom do Rei Midas de transformar tudo em
ouro), fez com que o meio ambiente fosse poluído, destruído ou alterado de
forma bastante prejudicial quer para si quer para todas as outras espécies (à
semelhança do Toque de Midas que o tornou o mais rico dos Homens e, no entanto,
o mais infeliz).
Mas as semelhanças não ficam por aqui. Apesar de consciente dos efeitos
negativos das suas acções no meio ambiente, o seu desinteresse e despreocupação,
motivados pela procura de lucros a todo o custo, levam-no a perpetuar actos
anti-ambientais e a não equacionar soluções ecológicas quando tais soluções
tenham um efeito negativo no lucro possível (à semelhança de Midas que não
soube escutar nem soube ser prudente, ficou com orelhas de burro).
Feita esta pequena analogia, cumpre desenvolver o problema afectação do
equilíbrio ambiental e as, possíveis, medidas humanas, nomeadamente no plano do
Direito, que façam frente ao flagelo ecológico.
Como
referia Ulpiano no Corpus Iuris Civilis,
“ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi
jus” que significa: onde está o homem, aí está a sociedade; onde está a
sociedade, aí está o direito[1].
O Direito é, pois, um “fenómeno humano e social”[2] que surge com a criação da
sociedade, e prossegue o fim principal de harmonizar a existência humana em
sociedade.
Aceitando esta premissa como verdadeira, facilmente damos o salto para a
protecção do Ambiente através do Direito. Se o Direito são as fundações onde
assenta a sociedade humana, então cabe a este tentar resolver os problemas
resultantes da acção humana enquanto sociedade. No caso problemas ecológicos e
ambientais.
Não obstante caber ao Direito a protecção do Ambiente, a generalização
da consciência ecológica é relativamente recente. Problema desconhecido até
então, foi na década de 60 que, através de movimentos radicais (normalmente
associados a movimentos sociais nascentes), ganhou projecção. Mas foi a partir
da década de 80 que deixou de ser uma bandeira de certos agrupamentos radicais
para passar a ser uma preocupação comum a todas as forças políticas. A
protecção do Ambiente tornou-se, assim, uma tarefa inevitável do Estado
moderno.
Como o Direito é um fenómeno humano e social, este varia de acordo com a
evolução ética e moral do Homem. Se este passa a preocupar-se com o Ambiente, o
Direito reflectirá precisamente isso. O que coloca a defesa do Ambiente como um
problema jurídico.
Abordando o problema apenas no plano jurídico, nomeadamente quanto à
natureza do direito ao ambiente e à tutela constitucional, cabe dizer o
seguinte:
A protecção do Ambiente inicia-se com a consagração de princípios gerais.
Veja-se, por exemplo, o princípio do desenvolvimento sustentável[3] que se traduz no “desenvolvimento que satisfaz as
necessidades presentes sem comprometer a capacidade de as gerações futuras
satisfazerem as suas próprias necessidades”. Veja-se, também, o princípio
da prevenção/precaução[4] que estatui que a
protecção do ambiente implica, mais do que a antecipação da protecção quanto a
perigos ou riscos comprovados, que “o ambiente deve ter em seu favor o
benefício da dúvida quando haja incerteza, por falta de provas científicas
evidentes, sobre o nexo causal entre uma actividade e um determinado fenómeno
de poluição ou degradação do ambiente” (J.J. Gomes Canotilho (coord.),
Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa: Universidade Aberta, 1998). Muito
importante, também, é o princípio do poluidor pagador. Este princípio atribui
aos sujeitos económicos, beneficiários de determinada actividade poluente, o
dever de por ela, responderem no que diz respeito à compensação dos prejuízos
que resultem para toda a comunidade do exercício dessa actividade. Enfim, há
uma pluralidade de princípios que a serem respeitados contribuem para a
conservação do Ambiente.
Juridicamente, devemos considerar o Ambiente como um direito subjectivo
ou, pelo contrário, um interesse difuso?
É uma questão que tem levantado polémicas na Doutrina[5]. Sem pretensões de um
desenvolvimento aprofundado sobre o tema posso dizer que na minha perspectiva, a
mesma que a do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, o direito ao ambiente
trata-se de um verdadeiro direito subjectivo por cinco razões:
1ª) Não é pelo facto de a teoria dos direitos subjectivos públicos ter
andado, historicamente, ligada a concepções positivistas e estatistas que vem a
perder o seu mérito dogmático. Além disso, é verdade que o reconhecimento de
direitos subjectivos perante as entidades públicas, conferindo aos particulares
um estatuto que lhes permitisse lidar com estas num plano de igualdade, é uma
decorrência do princípio da dignidade humana. E mais, é certo que, a
reconhecer-se um direito subjectivo ao ambiente, evitar-se-ia uma complexa separação
entre direitos fundamentais e demais direitos subjectivos públicos;
2ª) Admite-se perfeitamente que não proceda a objecção da diversidade e
multiplicidade dos direitos fundamentais, já que, nas palavras do Professor, “A
diversidade e multiplicidade dos direitos fundamentais, como dos demais
direitos subjectivos públicos, é antes uma realidade inevitável nas sociedades
complexas dos nossos dias, sem que isso signifique pôr em causa a respectiva
natureza jurídica substantiva”[6];
3ª) O facto de os direitos fundamentais se referirem a uma
multiplicidade de sujeitos em nada prejudica a sua qualificação como direito
subjectivo, uma vez que aqueles podem definir o estatuto dos particulares e daí
resultar a susceptibilidade de se concretizar uma relação jurídica;
4ª) Não é a insusceptibilidade de apropriação individual do bem jurídico
que impede a sua consideração como direito subjectivo;
5ª) A não admitir o direito ao ambiente como um verdadeiro direito
subjectivo resultaria que os particulares, perante administração, apenas
poderiam ter interesses similares ou opostos. Ou seja, era-lhes negada a
qualidade de sujeitos de direito. Mais, do ponto de vista teórico tal
implicaria uma distinção entre direitos de primeira, segunda e terceira linha,
o que não faz sentido uma vez que todas as posições jurídicas pessoais de
vantagem dos privados face à administração são direitos subjectivos.
Ao nível constitucional, autores como o
Professor Doutor Vasco Pereira[7] da Silva entendem que
a melhor forma de protecção do Ambiente é através da subjectivização do direito
do ambiente, ou seja, através da protecção jurídica individual concretizada nos
direitos fundamentais expressos na constituição. Daqui resulta que ao se integrar
a preservação do ambiente no âmbito da protecção jurídica subjectiva,
garante-se a adequada defesa contra agressões ilegais na esfera individual
protegida pelas normas constitucionais, pois os direitos fundamentais
constituem posições substantivas de vantagem dos indivíduos dirigidas contra o
estado e contra entidades privadas. Estes direitos possuem uma dupla natureza
pois, por um lado, são direitos subjectivos e, por outro, constituem elementos
fundamentais da ordem objectiva da comunidade. A matéria presente nestes
direitos goza dessa “dupla protecção”, a defesa a nível individual e a sua
imperatividade perante o ordenamento jurídico e a vida na sociedade[8].
Veja-se, por exemplo, o artigo 66º da Constituição da República
Portuguesa, que surgiu em 1976 tendo sido sucessivamente alterado nas várias
revisões constitucionais, e que diz no seu nº1 o seguinte: “ Todos têm
direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o
dever de o defender.” Mas não nos deixemos enganar pela sua inserção
sistemática no Capítulo dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Estamos
perante um verdadeiro direito fundamental[9]. Este artigo reforça a
dimensão subjectiva do Direito ao Ambiente.
Veja-se, agora, o artigo 9º alíneas d) e e) da Constituição da República
Portuguesa. Proclamam-se como tarefas do Estado “promover o bem-estar e a
qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a
efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante
a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.” (artigo 9º
d)), e “proteger e valorizar o património cultural do povo português,
defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um
correcto ordenamento do território.” (artigo 9º e)). Pelo conteúdo das normas
supra referidas (artigo 9º d) e e)), estas apresentam natureza programática.
Aqui já está em causa um reforço da dimensão
objectiva que se traduz na vinculação do estado à prossecução de políticas
ecologicamente auto-sustentadas. Pretende-se um estado activo na garantia dos
direitos ambientais e não um estado passivo, com meras condutas
abstencionistas.
Tudo considerado, acho que assiste total
razão ao Professor Doutor Vasco Pereira da Silva quando defende que o
tratamento constitucional do ambiente caracteriza-se por uma dupla consideração
da matéria, quer a nível de tarefas fundamentais do Estado, quer a nível de
direitos fundamentais.
Para terminar, cumpre dizer que através da
consagração de princípios gerais, que por sua vez inspiram soluções normativas
quer no âmbito das entidades internacionais, quer no plano do direito
fundamental de cada Estado, quer ainda nas suas próprias legislações
ordinárias, a protecção do Ambiente é possível.
Importa, no entanto, nunca esquecer que o
meio ambiente é condição imperativa à existência do Homem e que a sua protecção
deve ser procurada sempre.
Não
deixemos que a ganância nos permita transformar este mundo de ouro em lixo, nem
permitamos que o nosso egoísmo nos tape os ouvidos às preces de um mundo
natural em sofrimento. Não sejamos como o Rei Midas.
Bibliografia:
• Cordeiro,
António Menezes; Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral, Tomo I; 3ª
ed.; 2007; Almedina
• Miranda, Jorge; Manual de direito
constitucional, Tomo IV, 2ª edição, 1998 Coimbra editora
• Silva, Vasco
Pereira da; Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente; 1ª ed.; 2005;
Almedina
Martim de Avelar
[1] Romano,
Santi. L`ordinamento giuridico. Firenze: Sansoni, 1945, p.21
[2] Cfr.
Oliveira Ascensão em “O Direito, Introdução e Teoria Geral, pág. 23.
[3] Inicialmente
formulado na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Direitos Humanos,
realizada em Estocolmo, em 1972 e ficou consagrado no art. 1° da
Declaração aí produzida. Em 1992, sob égide do Tratado de Maastricht, este
princípio passa a constituir um dos objectivos do direito comunitário.
[4] O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva
afirma que a distinção entre princípio da precaução e princípio da prevenção
não faz sentido recorrendo-se a um argumento de natureza etimológica. Julga
existir uma relação de sinonímia entre as duas palavras, pelo menos na língua
portuguesa. Ainda assim, muitos autores entendem que se trata de duas coisas
diferentes. Na prevenção estariam em causa eventos naturais onde já se conhecem
os perigos. Enquanto que na precaução estariam em causa acções humanas e onde
ainda não se conheceriam os perigos, assentaria na ideia de risco.
[5]
Contraponha-se a posição do Professor Doutor Menezes Cordeiro com a do
Professor Doutor Vasco Pereira da Silva.
[6] Silva,
Vasco Pereira da; Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente; 1ª ed.;
2005; Almedina págs. 93 e 94.
[7] . Silva, Vasco Pereira da; Verde Cor de Direito –
Lições de Direito do Ambiente; 1ª ed.; 2005; Almedina
[8] Vieira
de Andrade, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976”, Almedina, 2010.
[9] Quanto a
este ponto, a divergência doutrinária é grande. Quer no sentido de se
considerar que o direito ao ambiente não é um direito fundamental, quer no
sentido de se defender que não é um verdadeiro direito fundamental mas antes um
direito análogo ao qual se aplicaria o mesmo regime dos Direitos Liberdades e
Garantias (e, repare-se, mesmo neste ponto há divergência. Uns entendem que se
aplica apenas o regime material, e outros que entendem que se aplica todo o
regime), quer ainda no sentido de considerar que se trata de um verdadeiro
direito fundamental. Outros ainda entendem que esta bipartição, entre D.L.G. e
D.E.S.C., é de se recusar.
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