domingo, 22 de abril de 2012

Sobre a responsabilidade por danos ambientais no D.L. 147/2008 - Que natureza é?

Com o Decreto-Lei nº 147/2008 de 29 de Julho, procedeu-se à transposição da Directiva 2004/35/CE de 21 de Abril de 2004 (com a alteração introduzida pela Directiva 2006/21/CE), vindo introduzir, ou mesmo reformular, o Regime Jurídico da Responsabilidade por Danos Ambientais (RJRDA). Antes da transposição da referida Directiva, o regime em vigor era bastante disperso, existiam várias fontes sendo que por vezes de difícil articulação (v.g., art. 41, 43 e 48 da Lei de Bases do Ambiente, art. 483 e seguintes do Código Civil (CC), art. 22 e 23 da Lei da Acção Popular (LAP)), e discutia-se quanto à precisão do conceito “dano ambiental”, assim como, que tutela caberiam aos interesses individuais, grupais ou difusos.

Contudo, a transposição feita pelo legislador nacional, não é isenta de discussões doutrinárias. E isto porquê? Poder-se-ia pensar, de forma abstracta, aquando a transposição, o legislador nacional teria cumprido a sua obrigação, o seu dever, e introduzido um regime tal qual como dita a Directiva, contudo, não foi isto que se passou. Podemos dizer que o legislador nacional foi além daquilo que fora consagrado pela referida Directiva, querendo abranger o máximo  possível e permitido a nível de tutela de danos ao ambiente, o que leva a afirmar que, a Directiva 2004/35/CE consagrou um regime mínimo, comum a todos os Estados-Membros, deixando-lhes, verdade seja dita, margem de manobra para irem além-Directiva e foi simplesmente isso que o legislador nacional fez. Isto é visível desde logo pelo facto de o legislador comunitário, ter adoptado uma lógica de responsabilidade preventiva quanto à ocorrência de danos com a respectiva reparação caso não seja possível o evitar dos mesmos, enquanto que o legislador nacional optou por consagrar diferentes formas de compensar os sujeitos lesados, adoptou um modelo assente na indemnização de danos individuais, para além do constante na Directiva, isto claro, permitido como expressa o art. 16 da Directiva 2004/35 CE.

Atendendo ao conteúdo do preâmbulo do RJRDA, como bem refere TIAGO ANTUNES, podemos retirar que temos um regime de dupla vertente (dois tipos de dano, dois mecanismos paralelos de tutela) como se enunciou supra: “Assim, estabelece -se, por um lado, um regime de responsabilidade civil subjectiva e objectiva nos termos do qual os operadores -poluidores ficam obrigados a indemnizar os indivíduos lesados pelos danos sofridos por via de um componente ambiental. Por outro, fixa -se um regime de responsabilidade administrativa destinado a reparar os danos causados ao ambiente perante toda a colectividade, transpondo desta forma para o ordenamento jurídico nacional a Directiva n.º 2004/35/CE […]” (6º parágrafo). Se nós atendermos aos Capítulos II e III do referido diploma, de facto, temos dois mecanismos diferentes, no primeiro, cabe a tutela de lesados directos por uma outra entidade/particular, no segundo, uma lógica de responsabilidade prevencionista e de reparação, que se impõem ao causador da ameaça, devendo o cumprimento ser assegurado pela Administração. A aceitação desta responsabilidade, destes mecanismos, com este conteúdo é controversa, o que se tentará expor nas próximas linhas.

A. Que dizer quanto aos danos ambientais abrangidos por ambos os diplomas?

Começando pela Directiva. Se nós olharmos quer ao considerando 14, quer ao art. 3 nº3, temos que a Directiva consagra um regime em que não atribui qualquer compensação por danos ambientais aos particulares, ou seja, afasta-se do conceito clássico de responsabilidade nos termos em que o lesado, deveria ser indemnizado, compensado, por um dano sofrido na sua esfera jurídica. Ou seja, de acordo com o conceito de direito ambiental contido no art. 2 nº1 da Directiva (que contem os danos à biodiversidade, os danos causados à água e ao solo), vem a integrar apenas danos ecológicos puros, i.e., em que o bem jurídico ambiente é objecto do dano e “não o percurso causal” do mesmo dano, como ocorre nos danos ambientes, segundo Cunhal Sendim.

Já no RJRDA, o conteúdo é diferente, ou varia conforme o mecanismo a que se recorre. Enquanto que no Capítulo III do DL 147/2008, temos a tutela de danos ecológicos, no Capítulo II temos uma lógica ressarcitória de danos subjectivos, que incidem sobre a esfera jurídica de um particular em concreto, ou melhor, os danos ao ambiente são o “percurso causal” do dano que se quer ressarcir. Não se tratará, neste Capítulo II, de restituir o que era antes do dano em termos ambientais, mas sim compensar os danos resultantes de uma perturbação ao ambiente. Isto, quanto a esta ultima parte, resulta de forma clara dos art. 7 a 9 do DL 147/2008, e que motivam uma natureza dúplice desta responsabilidade. Mas há mais…

B. Referiu-se em momento anterior que quer a Directiva, quer o RJRDA, consagram mecanismos preventivos e reparadores. Porém, cabe atentar o que se passa, concretamente, em cada instrumento.

A responsabilidade pensada pela Directiva, baseia-se no facto “prevenção”, i.e., no art. 5 da referida Directiva, temos determinados deveres específicos dirigidos a determinadas entidades, que, numa lógica preventiva, devem adoptar medidas pensando na eventual lesão decorrente de determinada prática, ou seja, a prevenção aqui é utilizada como um “desincentivo genérico à prática de actos danosos” que necessitam das entidades estaduais para darem resposta aos objectivos a que a Directiva se propõe. Também na Directiva, em especial, no art. 2 nº11 (que remete para o Anexo II), temos uma lógica reparadora face às lesões eventuais. Atendendo ao Anexo II, nos vários tipos de reparação aí previstos (primária, complementar e compensatória) temos uma lógica de reparação in natura, ou seja, uma reparação que consiste na reposição do estado ecológico anterior ou, se tal não for possível, por equivalente. O que se pretende com isto, apesar de em alguns pontos do referido anexo se fazer alusão a equivalência monetárias (que são necessárias para determinar reparações complementares ou compensatórias), o que se objectiva é à restauração dos componentes lesados, mesmo que de forma parcial, e não à indemnização por danos sofridos pelos particulares. Com isto, autores como TIAGO ANTUNES entendem que estamos perante uma responsabilidade sui generis que visa responsabilizar os operadores poluentes pelo facto de não terem adoptado medidas de prevenção/reparação por danos ao ambiente, tendo em conta o que fora dito.

E o que consta do RJRDA? Mais uma vez, o Capítulo III segue a lógica da Directiva, porém, o mesmo não se passa com o Capitulo II, pelo facto de o art. 10 nº1 do RJRDA consagrar “direitos indemnizatórios” aos lesados e o constante do Anexo V não se aplicar ao Capitulo II, ou seja, admite-se indemnizações por danos individuais. Isto é, e atendendo ao art. 48 da LBA, é preferível uma reparação in natura, porém, bastando não ser o interesse do lesado ou sendo excessivamente onerosa para o mesmo, admite-se a indemnização.

No que toca à indemnização, cabe ver quer o considerando 29, quer o art. 16 nº2 da Directiva. E porquê? Porque aí se prevê que, tendo ocorrido ou vindo a ocorrer um dano ambiental, deverão os Estados-Membros evitar que exista uma dupla cobrança pelo mesmo, cobrança essa imposta pela autoridade administrativa (de que se falará infra) competente pelo controlo de determinadas actividades, ou mesmo pelo particular que tenha sofrido uma determinada lesão decorrente de determinada actividade agressora. No que toca ao RJRDA, vem tratado no art. 10 nº1, que impede que os lesados de determinado dano exijam indemnização pelo dano sofrido se, já que remete para o Capitulo III, se consiga uma reparação in natura. Isto dito assim, daria a entender que o Capitulo II fosse subsidiário do Capitulo III e, de certa forma, iria ao encontro do entendimento sufragado por CARLA AMADO GOMES que discorda do consagrado neste DL 147/2008, defendendo ser de excluir qualquer indemnização a particulares, preservando e dando maior enfâse às reparações in natura, isto numa lógica pro ambiente. Porém, acompanhando TIAGO ANTUNES e MENEZES LEITÃO, isto talvez não seja bem assim, pois como bem refere, os art. 12 nº2 e 13 nº2 do RJRDA, dizem-nos que a reparação de danos para efeitos do Capitulo III não invalidará a responsabilidade que seja devida para efeitos do Capitulo II. Ou seja, a pergunta que se deve colocar é: temos aqui danos autónomos ou incidem sobre o mesmo? Entende o referido autor que o Capitulo II não é subsidiário em face do Capitulo III, pois, o que é de apreciar é se os lesados ficam ou não acautelados pela lógica do mecanismo presente no Capitulo III, e se não for o caso, então sim, ao abrigo dos art. 7 ou 8 do RJRDA, podem ser ressarcidos pelos danos sofridos, já que a reparação in natura não resolve totalmente a situação criada pelo dano.

 E caso o mecanismo da responsabilidade por danos subjectivos do Capitulo II vier a ser requerida antes do disposto no Capitulo III? TIAGO ANTUNES entende que, se os danos subjectivos forem reparados numa lógica in natura, o constante do Capitulo III estará verificado, ainda que por esta via, contudo, se não for o caso, a Autoridade Portuguesa do Ambiente (APA) poderá exigir medidas de reparação dos bens afectados, não valendo aqui o constante no art. 10 nº1 do RJRDA.

C. Pode-se dizer que, no RJRDA, temos um Capítulo III (que segue a Directiva) que institui um regime jurídico-publico, e um Capitulo II que institui um regime tipicamente privado.

E isto porquê? Se nós atentarmos ao Capitulo III, encontramos algumas disposições que estatuem alguns deveres e poderes à APA, como a possibilidade de aplicação do art. 26 do RJRDA, que visam que esta controle determinado tipo de actividades eventualmente lesivas do bem jurídico ambiente, e se repararmos bem, estas disposições mostram-se fundamentais, não só no que toca à efectivação da responsabilidade do agente poluidor, mas também, vem dar cumprimento à tarefa fundamental do Estado de proteger o ambiente, como demonstra o constante no art. 9 al. e) da Constituição da República Portuguesa. Já no que toca ao Capitulo II, o regime se afigura diferente, desde logo, por não intervir nenhuma entidade administrativa como a APA. Aí, tudo se move em termos obrigacionais, i.e., do art. 7 ao art. 10 do Capitulo II, relacionando o lesante e o lesado, muito próximo da figura constante no art. 483 e seguintes do CC. Contudo, podemos concluir este ponto dizendo, em ambos os casos temos regimes de responsabilidade civil, embora, regulados conforme a “fragrância” mais publicista ou mais privatista, tendo em conta os casos que ambos os Capítulos regem.

D. O que dizer sobre a natureza subjectiva ou objectiva do que já fora dito?

Quanto à imputação subjectiva, cabe ver os art. 8 no Capitulo II e art. 13 do Capitulo III. Aqui, ficarão obrigados ao ressarcimento de danos (que surjam com culpa ou negligencia) que venham ocorrer os particulares que prossigam actividades não constantes no Anexo III do RJRDA. Quanto à imputação objectiva, quer o Capitulo II, quer o Capitulo III, nos art. 7 e 12, respectivamente, do RJRDA, que remetem para o Anexo III do referido diploma, contêm esta responsabilização objectiva, i.e., independentemente de haver culpa, o facto de determinados particulares prosseguirem as actividades referidas no Anexo III, responderão pelos danos daí decorrentes. Também aqui temos uma realidade bicéfala, ou seja, tanto temos mecanismos de imputação subjectiva (que exige culpa do agente) como de imputação objectiva (dispensando o requisito da culpa do agente).

E. Chegados ao fim deste breve excurso,  será que podemos dizer que, fez bem o legislador ao constituir um regime de dupla vertente?

Se nós atendermos à necessidade e actualidade dos valores que compõem o Direito do Ambiente, dir-se-á que, quanto mais amplos forem as “armas de combate” a lesões a esta realidade comunitária, mais “aconchegado” estarão os vários componentes naturais. Contudo, também é de reconhecer, que essa mesma amplitude pode levar a conflitos e conjugações difíceis de resolver, isto mesmo numa lógica intra-sistemática, dentro do próprio regime (in casu) do D.L. 147/2008. Mas, apesar do que fora consagrado pelo legislador neste diploma, creio que estamos perante um regime sólido com capacidade de ir mais além, nomeadamente, no que toca a alguns bens não tutelados pelo Capitulo III do referido Decreto-Lei. E convém acentuar que, mais uma vez, o Direito da União Europeia em termos de Direito do Ambiente se afigura como uma importante fonte no que toca à defesa deste bem jurídico comunitário.

Bibliografia consultada:

  • ANTUNES, Tiago, "Da natureza juridica da responsabilidade ambiental" in  A responsabilidade civil por dano ambiental: Actas do colóquio, coord. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, ICJP, 2009;
  • LEITÃO, Menezes, "A responsabilidade civil por danos causados ao ambiente" in A responsabilidade civil por dano ambiental: Actas do colóquio / coord. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, ICJP, 2009;
  • SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 2002.

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