terça-feira, 3 de abril de 2012

Algumas notas sobre o direito (?) ao ambiente na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia


No nosso curso de Direito do Ambiente, temos já visto que a caracterização do direito ao ambiente - previsto no artigo 66.º CRP - como um direito subjectivo fundamental gera grandes dúvidas e controvérsia na Doutrina. Os problemas principais prendem-se, grosso modo, com aquilo que se deva entender por direito subjectivo, e com a questão de saber se o ambiente enquanto tal é um bem jurídico susceptível de apropriação individual ou não.
A meu ver, a questão pode ser também colocada num plano que se situa já fora do Direito Constitucional português, nomeadamente no plano do Direito da União. Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, entrou também em vigor a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), que dispõe no seu artigo 37.º, com a epígrafe "Protecção do ambiente": "Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de protecção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável". Há que lembrar que as normas contidas neste preceito gozam da mesma força jurídica que as restantes regras e princípios de Direito Primário (artigo 6.º/1 (1) TUE).
É inegável que esta disposição faz parte de um instrumento relativo à protecção de direitos fundamentais - mas significará isso que a CDFUE consagra um verdadeiro direito subjectivo fundamental ao ambiente? Ou limita-se a criar um mero princípio, na acepção da Carta?
Esta questão parece-me ser relevante, por uma série de motivos. Desde logo, se se concluir que a Carta cria um direito ao ambiente, estará a ser aberta a porta para que se discuta se o artigo 66.º CRP não deverá, eventualmente, ser interpretado em conformidade com o Direito da União, entendendo-se que este último impõe a atribuição de uma posição jurídica jusfundamental aos cidadãos dos Estados-membros. Há que ter presente que a União dispõe, nos termos do artigo 4.º/2 e) TFUE, de competência no domínio do ambiente, e que as normas de Direito Comunitário nessa matéria poderão ter de servir de parâmetro interpretativo das regras de Direito interno dos Estados-membros (Ac. von Colson). E, por outro lado, se se entender que essa interpretação conforme não será necessária, pelo menos as normas contidas no artigo 53.º da Carta, conjugadas com o princípio do primado, determinarão que, se se assumir que o Direito Constitucional português não inclui um direito fundamental ao ambiente, o reconhecimento desse direito é uma imposição aos Estados-membros, por a Carta garantir um nível de protecção mais elevado aos cidadãos que a Constituição portuguesa, ao atribuir um direito fundamental ao ambiente que esta última não prevê. Isto é, se a Carta garantir um tal direito subjectivo.
O que sucede é que a própria Carta traça, no artigo 52.º/5, uma distinção fundamental entre direitos e princípios. Estes últimos gozam apenas, nas palavras de Laurence Burgorgue-Larsen, se uma invocabilidade mínima, podendo apenas ser usados na interpretação e no controlo de legalidade de actos jurídicos da União ou dos Estados-membros, quando apliquem o Direito Comunitário. Os princípios de que fala a Carta constituem apenas normas programáticas, normas que fixam objectivos de cuja prossecução nem a União, nem os Estados membros, se poderão desviar. Não podem, em caso algum, ser invocados perante o juiz para exigir uma actuação positiva do legislador ou do executivo; apenas o poderão ser para efeitos interpretativos ou impugnatórios.
Qualificar o "direito" ao ambiente previsto na Carta como um verdadeiro direito subjectivo fundamental ou como um princípio (na acepção da CDFUE) comporta, pois, importantes consequências práticas. Para além do grau de sindicabilidade mais reduzido dos princípios face aos direitos, pode-se discutir se determinadas normas pertencentes às denominadas "cláusulas horizontais" da Carta (artigos 51.º-54.º) serão aplicáveis aos "direitos" que na realidade, são princípios para efeitos da Carta, pela própria natureza e sentido que os Autores dos Tratados lhes quiseram dar. Duvido, por exemplo, que as regras relativas à interpretação de normas de direitos fundamentais correspondentes aos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ou decorrentes das tradições constitucionais comuns dos Estados-membros, sejam aplicáveis aos princípios da Carta (artigo 52.º/3 e 4 CDFUE). Duvido que o preceito relativo às restrições de direitos fundamentais possa ser aplicável a meros princípios (artigo 52.º/1 CDFUE), se esses se limitam a fixar objectivos sem conferir posições jurídicas individuais.
A opção de Direito Primário de distinguir direitos e princípios deveu-se, como salientam Burgorgue-Larsen e Ana Maria Guerra Martins,  às hesitações de certos Estados-membros - entre os quais o Reino Unido e a Dinamarca - em aceitar que a Carta pudesse conter disposições com efeito directo sobre direitos sociais que retirassem aos Estados-membros a sua autonomia na definição das políticas internas em determinados domínios, como o da saúde, da negociação colectiva, e o das condições de trabalho (cfr. artigos 35.º, 28.º e 31.º CDFUE). Por isso, apesar de não estabelecer nenhum critério claro que permita apartar as duas categorias, a Carta consagrou o binómio direitos-princípios, com as consequências de regime já apontadas. Apenas através da interpretação dos preceitos poderemos saber se estes criam ou não direitos subjectivos fundamentais.
Dito isto, atente-se no que dispõe o artigo 37.º CDFUE: por um lado, fixa como objectivo de "todas as políticas da União" a garantia de um elevado nível de protecção do ambiente e melhoria da sua qualidade; por outro, estabelece como linha de orientação desse objectivo o princípio do desenvolvimento sustentável.
Por isto, há que concluir, com Burgorgue-Larsen e com Michel Prieur, que o artigo 37.º CDFUE não consagra um direito fundamental ao ambiente, mas uma norma programática que o legislador comunitário ou nacional terá de respeitar, um princípio. Contra, Patrick Thieffry limita-se a afirmar o contrário, que o artigo 37.º contém também um direito fundamental.
Não posso concordar com a posição deste Autor, por três motivos:
Primeiro, a inserção sistemática do artigo 37.º, no Título IV da CDFUE, relativo à "Solidariedade", dá-nos um argumento contra a defesa da existência de um verdadeiro direito subjectivo fundamental ao ambiente: É que a maioria dos direitos sociais cuja inclusão na Carta gerou controvérsia, levando à sua consagração enquanto princípios e não posições jurídicas subjectivas, se encontra nesse mesmo título (Michel Prieur)
Em segundo lugar, poderá ser invocado um argumento histórico: na Convenção em que a Carta foi elaborada, foram rejeitadas todas as propostas, quer de membros (como Braibant e Meyer) quer de ONGs, que referiam "direito". Foram chumbadas propostas de redacção como "A União protegerá o direito de todos a viver num ambiente adequado à preservação da saúde", "a União reconhece e respeita o direito à protecção de um ambiente são", "o direito de toda a pessoa a viver num ambiente limpo" ou "todas as pessoas têm o direito de viver num ambiente limpo e são, bem como o dever de preservar a qualidade do ambiente para as gerações actuais e futuras".
Por fim, um confronto com outras disposições de Direito Originário permite-nos concluir, sem reservas, que apenas se trata na Carta do estabelecimento de um princípio a observar na adopção de políticas ambientais e de reafirmar um princípio do desenvolvimento sustentável já enraizado nos Tratados antes de Lisboa: veja-se o artigo 191.º TFUE. No n.º 2, lê-se que "a política da União no domínio do ambiente terá por objectivo atingir um nível de protecção elevado", no n.º 1, deverá ainda dirigir-se à "melhoria da qualidade do ambiente". Nos n.ºs 1 e 3, o Direito Primário exige que a política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução do objectivo da "utilização prudente e racional dos recursos naturais" e que tenha em conta "o desenvolvimento económico e social da União no seu conjunto e o desenvolvimento equilibrado", que se poderão ver como projecções do princípio do desenvolvimento sustentável. Como se vê, o artigo 37.º limita-se a reproduzir materialmente o disposto noutros preceitos de Direito Originário que não conferem, indiscutivelmente, nenhum direito subjectivo. A inserção sistemática deste princípio da Carta apenas traz de novo, segundo penso, a sua vinculatividade para os Estados-membros, para os seus tribunais, para as suas Administrações Públicas e para os legisladores, quando apliquem o Direito da União (artigo 51.º/1 CDFUE).

Pelas razões apontadas, o artigo 37.º da Carta dos Direitos Fundamentais não consagra um direito fundamental ao ambiente, mas um mero princípio, na acepção do artigo 52.º/5.



Filipe Brito Bastos, n.º 18130
Subturma 9



Bibliografia consultada:

Ana Maria Guerra Martins, Ensaios sobre o Tratado de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2011

Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2004

Laurence Burgorgue-Larsen/Anne Levade/Fabrice Picod, Traité établissant une Constitution pour l'Europe, II, Commentaire article par article, Bruylant, Bruxelas, 2005 (anotações de Michel Prieur ao artigo II-97 do Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa, correspondente ao artigo 37.º da Carta, e de Laurence Burgorgue-Larsen ao artigo II-112, hoje artigo 52.º)





Patrick Thieffry, Droit de l'Environment de L'Union Européenne, Bruylant, Bruxelas, 2008

Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente, Almedina, Coimbra, 2002


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