A partir da
segunda metade da década de 90, a Administração Pública celebrou contratos de
adaptação ambiental com as associações representativas de diversos sectores
económicos. Estes contratos tinham como objecto conceder às empresas poluidoras
aderentes um prazo para se adaptarem à legislação ambiental vigente, ficando
estas autorizadas a desenvolver níveis de poluição que ultrapassavam os limites
estabelecidos durante um determinado período.
Em contrapartida, as empresas
aderentes obrigavam-se a dar cumprimento às prescrições estabelecidas e
aos prazos indicados no plano de adaptação ambiental acordado e ainda a
adaptarem os seus processos produtivos às normas ambientais até ao termo da
vigência do contrato.
Nos termos do
40º/3, al. b) do Decreto-Lei 74/90, seria o Director-Geral da Qualidade
Ambiental que tinha competência para, relativamente às empresas já instaladas à
data da sua entrada em vigor, fixar por despacho um prazo de adaptação às
normas de descarga de àguas residuais. Resulta daqui que a competência
atribuída à Administração é a de determinar uma entrada em vigor diferida e
faseada para determinados destinatários das novas normas de descarga e não a de
derrogar as normas imperativas de polícia ambiental.
Na prática, a
Administração veio através dos contratos de adaptação ambiental regular por via
contratual, em alternativa à emanação do referido despacho do
Director-Geral. Em princípio, nada
impediria que assim fosse, uma vez que o 179º do CPA confere a possibilidade de
celebração de contratos administrativos sempre que o desejar para exercício das
competências materiais que lhe sejam atribuídas por lei. Todavia, a doutrina
discutiu se esta solução transitória constituia base normativa suficiente para
a celebração de contratos de adaptação ambiental ou se, pelo contrário, esta
implicaria uma violação do princípio da tipicidade das formas legais previsto
no 112º/6 da CRP, uma vez que a produção dos efeitos das normas em causa
ficariam dependentes da prática de um acto administrativo ou da celebração de
um contrato administrativo.
Uma parte da
doutrina defendeu que tratar-se-ia de um caso de reenvio normativo da lei para
a Administração no sentido desta executar ou adaptar ao caso concreto os seus
preceitos e, nesta medida, o acto administrativo que determina o prazo de
adaptação ambiental e, consequentemente, o momento do início da vigência da lei
manteria a sua natureza e hierarquia administrativa, porque estaria apenas a
assegurar a operatividade da lei. Outra parte da doutrina, designadamente GOMES
CANOTILHO, entendeu que se tratava de um caso de elevação do acto
administrativo ao escalão legislativo, implicando a incorporação do conteúdo do
acto da Administração no âmbito da própria lei, tratando-se de uma
inconstitucionalidade material por
violação do 112º/6 da CRP.
Ora, a
determinação do momento do início da vigência de uma lei faz ainda parte do
conteúdo dessa lei, porque está directamente relacionada com aspectos
essenciais relativos aos seus efeitos, pelo que a previsão de que a sua entrada
em vigor depende de um acto infra-legal representa uma delegação no poder
administrativo de completar o conteúdo do acto legislativo. Para além disso,
este tipo de normas transitórias não se confunde com aquelas que fazem depender
o início de vigência da lei de regulamentação complementar, pois nestas últimas
a lei é inexequível por si mesma, carecendo de uma actividade concretizadora ao
nível administrativo para se tornar operacional, enquanto que a norma
transitória em discussão tem um efeito constitutivo, já que a lei era exequível
por si só, mas por efeito do 40º/3 passa a ser a Administração a ter o poder de
determinar o momento em que aquela começa a produzir os seus efeitos.
Apesar do
exposto, esta norma transitória nunca foi questionada quanto à sua possível
inconstitucionalidade e constituiu a base para a maior experiência de
contratualização ambiental desenvolvida em Portugal até ao presente.
2) Os novos contratos de adaptação
ambiental, previstos no 78º do DL nº236/98, de 1 de Fevereiro
Este novo diploma veio estabelecer “normas,
critérios e objectivos de qualidade com a finalidade de proteger o meio
aquático e melhorar a qualidade das águas em função dos seus principais usos”,
revogando o DL nº 74/90 e, em consequência, a execução dos contratos de
adaptação celebrados ao abrigo do antigo diploma findou em 31 de Dezembro de
1999.
Nos termos do
78º/1, o contrato de adaptação ambiental tem como finalidade a adaptação à
legislaçao ambiental em vigor (...) e à redução da poluição causada pela descarga
de águas residuais no meio aquático e no solo.
Nos termos do
mesmo número, os sujeitos contratuais são as associações representativas dos
sectores industriais e agro-alimentares e o Ministério do Ambiente e o
Ministério responsável pelo sector da actividade económica. No entanto, os
ministérios não são sujeitos de direito, pois não são pessoas colectivas nem
órgãos, mas simples serviços do Estado. Do 78º/5 parece resultar que a
Direcção-regional do Ambiente é o órgão geralmente competente em matéria de
descargas poluentes, pelo que deve ser também ela a celebrar os referidos
contratos, ao abrigo do 179º do CPA que estabelece que os órgãos competentes
podem optar entre a prática de actos administrativos e a celebração de
contratos, na prossecução das atribuições da pessoa colectiva em que se
integram.
Uma vez celebrado o contrato de adaptação,
podem aderir quaisquer empresas de um determinado sector da actividade
económica, independentemente de estarem ou não representadas pela associação
que celebrou o acordo. Daí que, para assegurar a possibilidade de adesão ao
contrato de todas as empresas que o pretendam, se estabeleçam regras destinadas
a garantir a necessária publicidade, nomeadamente o 78º/11.
Por último,
relativamente à fiscalização e sanções, nos termos do 78º/6 os respectivos plano e calendário passam a
ser aceites como referência para a fiscalização da actividade das instalações
das empresas aderentes no que respeita ao cumprimento das suas obrigações
ambientais. E em caso de desrespeito do acordo será notificada a empresa para
correcção das faltas cometidas, sob pena da cominação de sanções que podem
levar à exclusão do contrato por decisão fundamentada do Director-Geral do
Ambiente (78º/7 e 8).
O 78º regula o
regime jurídico deste tipo contratual numa tentativa de passar para a letra da
lei aquilo que já resultava da prática administrativa, numa tentativa de sanar
a deficiente base legal que os contratos originais apresentavam. No entanto, do
que será exposto de seguida será facil perceber que foi uma tentativa falhada.
Em primeiro
lugar, parece decorrer do 78º/1 e 3 que se pode isentar as empresas aderentes,
por via contratual, durante o período de adaptação, do cumprimento de quaisquer
normas ambientais imperativas que estejam em vigor. No entanto, a doutrina tem
adoptado uma interpretação restritiva da norma, limitando o seu âmbito de
aplicação aos processos de adaptação das empresas já instaladas à nova
legislação introduzida pelo novo diploma, pois de outra forma estar-se-ia a violar
o princípio da tipicidade das formas de lei.
Em segundo
lugar, a solução consagrada no 78º/3 é mais censurável que a estabelecida no
40º/3 do antigo diploma. Enquanto que neste último as normas ambientais não
chegavam a entrar em vigor, porque o referido preceito fazia depender o seu
início de vigência de um acto administrativo a praticar pelo Director-Geral da
Qualidade Ambiental, na nova solução as normas do diploma entram plenamente em
vigor findo o prazo de vacatio legis, vindo o 78º/3 habilitar a Administração a
suspender os efeitos das normas deste diploma, violando directamente o 112º/6
da CRP.
Entre a
doutrina será de destacar a opinião de MARK KIRKBY, que defende que o contrato
de adaptação ambiental no quadro do ordenamento jurídico constitucional
português terá sempre que ser analisado como marginal ou residual,
relativamente a outros instrumentos de actuação administrativa ambiental. Enumera
ainda três situações em que a utilização de contratos administrativos no
domínio do ambiente será sempre lícita, nomeadamente:
- Contratos de adaptação a normas legais que estabelecem limites imperativos de poluição, mas cuja previsão ou estatuição comporte uma determinada margem de abertura;
- Contratos de adaptação a normas de natureza regulamentar, isto é, contratos substitutivos de actos administrativos praticados no exercício de poderes administrativos de polícia ambiental do tipo preventivo;
- Contratos de promoção ambiental, ou seja, contratos através dos quais as unidades poluentes se comprometem a melhorar as suas prestações ambientais minímas definidas por lei imperativa.
Igualmente
VASCO PEREIRA DA SILVA, entende que apesar de não ser admissível a existência
de contratos administrativos violadores dos príncipios constitucionais da
legalidade e da tipicidade dos actos normativos, tal não significa o
afastamento da celebração de contratos de adaptação ambiental, em razão de
valores que estes também prosseguem, como a eficácia, participação e tutela da
confiança.
Este autor
entende que, para além da admissibilidade de celebração de contratos de
adaptação ambiental no domínio correspondente à margem de apreciação ou de
decisão por parte de Administração, elencadas acima por MARK KIRBY, considera
ainda admíssivel os contratos de
adaptação ambiental que se afastem de limites legais, a título excepcional,
desde que isso seja possível encontrar cabimento na previsão legislativa, não
corresponda a uma situação de fraude à CRP ou fraude à lei e não ponha em causa
os princípios fundamentais da actuação administrativa, nomedamente os
princípios da igualdade, proporcionalidade e imparcialidade. Tendo em conta que
o 112º/6 da CRP tem como finalidade evitar fugas à hierarquia dos actos
normativos, se os contratos de adaptação ambiental não configurarem uma
situaçao de fraude, mas antes um mecanismo concertado e gradual de aplicação à
lei, nos termos em que ela própria estabelece, não existirá violação da
disposição constitucional.
Ainda ficaria
todavia dependente de mais duas condições,
nomeadamente a de que fosse razoável considerar que a lei fixadora de
limites consagrava dois regimes jurídicos, o geral, imediatamente aplicável; e
o especial, apenas parcialmente determinados pela lei e cuja aplicação ficaria
dependente da celebração de um contrato administrativo; e que esse regime
especial apesar da margem de decisão conferida à Administração, estaria sempre
limitado pelas regras de competência, de fim e pelos princípios fundamentais da
actividade administrativa.
Desde que verificadas
estas condições, VASCO PEREIRA DA SILVA considera admissível os contratos de
adaptação ambiental no ordenamento jurídico português.
Bibliografia:
- KIRKBY, Mark Bobela-Mota, “Os contratos de adaptação ambiental: a concentração entre a Administração Pública e os particulares na aplicação de normas de polícia administrativa”, FDL, 2000;
- SILVA, Duarte Bernardo Rodrigues, “Os contratos de adaptação ambiental”, FDL, 2001
- SILVA, Vasco Pereira da, "Verde, Cor de Direito. Lições de Direito do Ambiente", Almedina, 2002.
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