1.
Riscos ambientais transfronteiriços
Os riscos ambientais apresentam hoje, em
virtude da atividade humana, desafios que não podem ser superados pela ação
isolada de um Estado. Por um lado, não há fronteira que detenha os riscos
ambientais. Pense-se, por exemplo, no caso ocorrido na cidade de Bâle (Suíça),
em que o incêndio ocorrido numa indústria de produtos químicos emitiu fumos
tóxicos para a República Federal Alemã e causou o derrame de produtos químicos
tóxicos no Rio Reno, levando não só à destruição dos ecossistemas ribeirinhos
como também à perturbação do abastecimento de água dos países situados a
jusante (França, Alemanha, Holanda). Por outro lado, os Estados têm cada vez mais
dificuldade em enfrentar os riscos ambientais sem auxílio, material ou
financeiro, de outros Estados. Neste sentido, atente-se para a maré negra
resultante da explosão ocorrida em Abril de 2010 numa plataforma petrolífera
pertencente à BP (British Petroleum) situada no Golfo do México. Este caso
demonstra que mesmo uma superpotência como os EUA pode ver-se perante a
carência de tecnologia necessária para enfrentar um dos piores desastres
ambientais da história.
A prevenção e gestão dos riscos
ambientais exige portanto a ação coordenada de vários Estados. Esta coordenação
pode consubstanciar-se no estabelecimento de deveres de informação e
comunicação, como por exemplo: (i) informar os outros Estados sobre os projetos
que se pretendem concretizar; ou (ii) comunicar a ocorrência de acidentes
industriais[1].
Pode também ser previstas obrigações de negociação, obrigações de auxílio
mútuo, ou ainda obrigações de contribuir para fundos susceptíveis de serem
mobilizados em caso de concretização dos riscos ambientais. Finalmente, a
coordenação da ação dos Estados pode traduzir-se na adopção de planos comuns de
prevenção de riscos[2].
Todavia, existem situações em que os
Estados não atuam em coordenação com outros Estados para salvaguardar
determinados bens ambientais. Nesses casos, podem surgir controvérsias a
propósito de decisões unilaterais de um Estado que comprometem um bem ambiental partilhado ou pertencente a outro Estado, sem que este último tenha
participado na decisão. É exatamente neste contexto que se insere um acórdão do
Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que é chamado a pronunciar-se sobre a
aplicação de um Estatuto relativo à gestão de um recurso natural partilhado
pelo Uruguai e pela Argentina: o Rio Uruguai.
2.
Cursos de água internacionais
Uma vez que a água é um recurso
indispensável não só para a vida humana mas também para a maioria das
atividades desenvolvidas pelo Homem, não
é surpreendente o surgimento de controvérsias interestaduais quanto ao
aproveitamento deste mesmo recurso natural.
Na verdade, não é a primeira vez que o
TIJ lida com casos que envolvem a gestão de cursos de água partilhados por
vários Estados. No célebre caso Gabcíkovo
Nagymaros, que opôs a Hungria à Eslováquia, o TIJ foi chamado a
pronunciar-se sobre a violação de um acordo relativo a um projeto hidroelétrico
celebrado entre dois Estados. Contudo, o caso Gabcíkovo Nagymaros distingue-se do caso que se pretende analisar.
Neste caso invoca-se a proteção de bens ambientais de interesse essencial para
excluir a ilicitude do incumprimento de obrigações assumidas pela Hungria em
relação à Eslováquia – a proteção ambiental é aqui invocada como causa de
exclusão da ilicitude. Inversamente, no caso relativo às fábricas de celulose
no Rio Uruguai, a Argentina suscita a intervenção do TIJ na medida em que
considera que o comportamento do Uruguai ameaça o equilíbrio ecológico do Rio
Uruguai.
3.
Autorização unilateral de projetos de fábricas de celulose
No ano de 2005, a República Oriental do
Uruguai autorizou a implantação de duas fábricas de celulose próximo de uma
localidade chamada Fray Bentos, situada na margem esquerda do Rio Uruguai.
Todavia, como resulta do Estatuto do Rio
Uruguai (assinado pelo Governo da República da Argentina e o Governo da
República Oriental do Uruguai), o Uruguai e a Argentina não podem autorizar
obras localizadas na margem do Rio Uruguai sem cumprir um procedimento prévio
que envolve a intervenção da Comissão Administradora do Rio Uruguai (CARU). A
autorização destes empreendimentos na margem esquerda do Rio Uruguai não
poderia ser realizada à margem das obrigações de informar, notificar e
negociar. No entanto, foi exatamente isso que sucedeu: o Uruguai não informou a
CARU dos seus projetos, não notificou a Argentina nos termos do Estatuto e,
consequentemente, o Uruguai obstou à possibilidade de realizar negociações com
a Argentina.
Perante o comportamento do Uruguai, a
única possibilidade que restou à Argentina para compelir o Uruguai ao
cumprimento das suas obrigações foi a de recorrer ao TIJ nos termos dos arts.
12.º e 60.º do Estatuto do Rio Uruguai.
4.
Resolução judicial do problema
Em Maio de 2006, a Argentina intentou uma
ação contra o Uruguai junto do TIJ. Invocou a violação das normas do Estatuto,
e sublinhou que a autorização da construção, a construção e a eventual entrada
em funcionamento das fábricas de celulose iria ter efeitos nocivos nas águas do
Rio Uruguai e na sua zona de influência[3].
No sentido de prevenir os riscos inerentes ao funcionamento da fábrica, a
Argentina requereu também a adopção de medidas conservatórias.
O TIJ não acedeu ao pedido de adopção de medidas
conservatórias, permitindo desta forma que as fábricas de celulose iniciassem a
sua atividade. E no acórdão de 20 de Abril de 2010 acabou por considerar que o
Uruguai apenas havia violado obrigações de natureza procedimental. Assim,
admitiu que o Uruguai não tinha cumprido as obrigações de informar, notificar e
negociar. Em contrapartida, declarou que
a Argentina não conseguiu provar cabalmente os efeitos nocivos para o ambiente
que havia invocado. O TIJ concluiu portanto que o Uruguai cumpriu as obrigações
materiais que sobre ele impendiam. O encerramento da fábrica de celulose –
pedido pela Argentina depois da mesma ter entrado em funcionamento – estaria
por isso fora de questão. A Argentina teria de se contentar com a mera
declaração de violação de obrigações procedimentais.
5.
Declaração do TIJ no Acórdão de 20 de Abril de 2010
O TIJ declarou no acórdão de 20 de Abril
de 2010 que só no caso de serem violadas obrigações materiais é que o Uruguai
seria obrigado a encerrar a fábrica de celulose. Isto significa que, no caso
concreto, a procedência da pretensão da Argentina estava dependente da prova de
que as descargas da fábrica de celulose eram susceptíveis de provocar danos.
A avaliação dos danos relativos à prova
da violação das obrigações materiais foi um dos aspectos mais controvertidos no
seio do TIJ. Contudo, foi exatamente nesta avaliação que o TIJ se fundou para
declarar que o Uruguai não havia violado as suas obrigações materiais.
Desta forma, é usual encontrar ao longo
do acórdão expressões como “não demonstrou de forma convincente”, “o Tribunal
não está em posição para concluir”, “não existem provas suficiente para
concluir”, “não ficou claramente estabelecido nexo de causalidade”. Mais do que
falta de prova, estas expressões refletem a dificuldade do tribunal em extrair
conclusões a partir dos dados que lhe foram apresentados por ambas as Partes.
Portanto, em função das incertezas existentes, o TIJ não deveria ter limitado a
ouvir os peritos apresentados pelas Partes nos termos do art. 43.º do Estatuto
do Tribunal Internacional de Justiça (ETIJ), desde logo por causa da relação de
dependência subjacente.
Parece que a solução mais adequada teria
sido o recurso à faculdade consagrada no artigo 50.º do ETIJ: “O Tribunal
poderá, em qualquer momento, cometer a qualquer indivíduo, entidade,
repartição, comissão ou outra organização à sua escolha a tarefa de proceder a
um inquérito ou a uma peritagem”. Trata-se até de uma hipótese que já foi
utilizada pelo TIJ no Caso Canal do Corfu,
que opôs o Reino Unido à Albânia, em 1949. O não recurso a este mecanismo
obstou a uma avaliação séria dos dados apresentados. A situação ainda se torna
mais grave se acrescentarmos um outro aspecto: não obstante o facto de as
Partes (Argentina e Uruguai) reconhecerem a necessidade de adoptar medidas de
precaução, o TIJ preferiu não se pronunciar quanto à aplicação do princípio da
precaução no caso concreto. De facto, a Argentina argumentou que o Estatuto
consagrava uma aproximação precaucionaria que implicava a inversão do ónus da
prova. Desta forma, caberia ao Uruguai provar que o seu projeto não causaria
danos ao ambiente. O TIJ não acolheu esta posição e perdeu a oportunidade de
recorrer ao princípio da precaução como critério decisório num domínio em que
existia incerteza científica.
Um dos aspectos inovadores deste acórdão foi o reconhecimento
da existência, no direito internacional geral, de uma obrigação de proceder a
uma Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) sempre que a atividade industrial
projetada seja susceptível de ter um impacto prejudicial significativo num
contexto transfronteiriço, e em especial num recurso partilhado.
O TIJ considerou no entanto que o direito
internacional não permite concretizar o âmbito e o conteúdo da AIA. Cabe
portanto a cada Estado determinar, no quadro da sua legislação nacional ou do
processo de autorização do projeto, o conteúdo exato da AIA, tendo em
consideração a natureza e dimensão do projeto em causa e o seu impacto negativo
provável sobre o ambiente, assim como exercer toda a diligência necessária
quando proceda a tal avaliação.
Todavia, a AIA deverá sempre preceder a
concretização do projeto. E uma vez concretizado o projeto, o Estado fica
obrigado a uma vigilância contínua dos efeitos do projeto sobre o ambiente que
poderá prolongar-se por toda a vida do mesmo se tal for necessário.
Assim, apesar de o TIJ se ter limitado a
declarar a violação das obrigações procedimentais por parte do Uruguai, o
acórdão não deixa de ter um efeito útil: o Uruguai encontra-se expressamente obrigado
a realizar o controlo e monotorização do funcionamento da fábrica de celulose.
A forma como o TIJ lidou com este caso
poderá desincentivar os Estados de recorrer ao TIJ para resolver controvérsias
envolvendo um elevado grau de complexidade científica.
No entanto, independentemente de todas as
críticas, este acórdão não deixou de apresentar avanços. Desde logo, a AIA
passa a ser considerada como obrigação
decorrente do direito internacional geral, sempre que a atividade industrial
proposta possa ter impactos ambientais negativos transfronteiriços. Em segundo
lugar, este acórdão vem também avisar que os Estados que pretendem realizar
projetos que afectem recursos naturais partilhados terão de respeitar elevados
níveis de diligência na prevenção de danos a esses recursos. Finalmente, o
acórdão do TIJ teve como efeito útil a imposição duma obrigação de controlo e
monotorização sobre o Uruguai.
[1] Ver a este propósito o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de
Julho, que estabelece o regime jurídico da responsabilidade por danos
ambientais, que prevê as medidas a adoptar pelas autoridades competentes em caso de ocorrência de dano ambiental
transfronteiriço ou ameaça iminente do mesmo.
[2] Directiva 2007/60/CE, de 23 de Outubro.
[3]A Argentina invocou
também a violação de normas de acordos internacionais aplicáveis às Partes nos
termos do artigo 41.º do Estatuto, mas o TIJ considerou que a sua jurisdição só
lhe permitia conhecer das violações das obrigações previstas no Estatuto.
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