1. Simples horizontalidade ou
“deverosidade"
Partindo do
direito fundamental ao ambiente (de dupla natureza), previsto no art. 66 nº1 da
Constituição da República Portuguesa, podemos encontrar aí, para além de um
direito fundamental, um dever fundamental quanto à defesa do bem jurídico
ambiente, um dever que vincula toda a comunidade na protecção do ambiente. É um
dos raros exemplos no nosso texto constitucional em que encontramos, de forma
expressa, a consagração de um dever fundamental, figura esta que tem sido
“posta de lado”, pelo facto de se ter dado mais atenção à consagração de um rol
extenso de direitos fundamentais, tendo em conta o momento histórico em que o
texto fora elaborado pela Assembleia Constituinte à altura da Constituição de
1976. Daí que, por
exemplo, no que toca ao Direito do Ambiente o dever fundamental quanto à
protecção do ambiente é pouco tratado pela doutrina. Daí a importância de
deixar umas breves notas quanto à “face oculta”, e tão importante, do direito
fundamental ao ambiente.
Quando falamos
de deveres fundamentais, falamos de autênticas posições jurídicas passivas dos cidadãos. Os
deveres fundamentais não são apenas uma espécie de limitação a direitos
fundamentais, i.e., nos demais direitos conhecidos e defendidos na nossa ordem
jurídica, encontraremos (apesar de “sumidos”) autênticos comandos passivos,
integrantes da esfera jurídica do cidadão, vinculando-o ao respeito por valores
que não lhe cabem apenas a si, individual, mas a toda uma comunidade jurídica à
qual o individuo pertence, que ele é obrigado a respeitar. Poder-se-ia dizer que o thelos dos deveres fundamentais não seria mais que um mero limite a um direito fundamental, e de facto, apesar de não ser esse o seu objectivo ultimo, devemos aceitar a verificação de que determinadas faculdades ficam de fora do âmbito de protecção da constituição, acabando nós por obter um limite imanente de determinado direito fundamental. Convém, ainda, precisar o seguinte, cabe reservar o termo "dever fundamental" para nos referirmos a uma posição passiva do cidadão, não devendo confundir com o constante, v.g., no art. 9 da CRP, pois aí, temos uma "tarefa fundamental" do Estado, que deve satisfazer, objectivamente, os interesses e necessidades da colectividade (embora num sentido amplo o conceito de dever fundamental abarque as duas realidades).
Pelo
art. 18 nº1 da CRP, temos que, quer particulares, quer entidades públicas,
estão vinculados aos demais Direitos, Liberdades e Garantias. Ou seja, a partir
deste normativo, poder-se-ia retirar que, pela eficácia horizontal de direitos
fundamentais face a terceiros que estão vinculados a respeitar os referidos direitos, se encontraria
aqui a essência do dever fundamental, i.e., se eu estou vinculado ao respeito de
um direito fundamental, que o seu exercício é legitimo por outrem, então isto
tudo deriva da dita “Drittwirkung”,
que funcionaria da maneira inversa se fosse eu a exercer (ou simplesmente a que eu seja titular do mesmo), legitimamente, determinado direito
fundamental, terceiros estariam vinculados ao respeito a esse mesmo facto. Autores como TIAGO ANTUNES entendem
que as figuras se distinguem pela autonomia dos deveres fundamentais, i.e., estes não
estariam dependentes da existência de qualquer direito, ao contrário do que se
passaria no campo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que
poderíamos recortar uma espécie de obrigação do sujeito passivo vinculado pelo
art. 18 nº1 da CRP. Caberá concretizar exposto, designadamente, focando no tema em estudo.
2. Segue; A anatomia deste dever
fundamental
Antes
de prosseguir, cabe fazer uma breve referência à destrinça entre deveres
autónomos e deveres associados a direitos.
Quanto
aos deveres fundamentais autónomos, pode-se dizer que são os que são impostos
pela Lei Fundamental sem estarem dependentes de qualquer direito, v.g., o dever
de pagar impostos, art. 103 e 104 da CRP. Neste tipo de deveres fundamentais,
refere VIEIRA DE ANDRADE, que não há muita divergência doutrinária no campo
constitucional, sendo de reconhecer a devida relevância jurídica em matéria de
direitos fundamentais como quanto à possibilidade de restrição de direitos,
pelo legislador, na medida do necessário, art. 18 nº 2 e 3 da CRP.
Quanto
aos deveres fundamentais associados a direitos, podemos distinguir duas formas.
Numa, podem ter um conteúdo idêntico ao respectivo direito, convivendo na
correspondente autonomia, tendo uma dupla natureza, transmitindo a ideia de que
as condutas visadas podem e devem ser exercidas (numa lógica de
direitos-deveres, poderes-deveres, v.g., “os pais têm o direito e o dever de
educação dos filhos” - art. 36 nº5 da CRP), contudo, apesar de o dever limitar
a liberdade do direito, à que circunscrever à realidade que os une, sob pena de
criar problemas ao nível de funcionalização de direitos fundamentais. Noutra,
podem ter um conteúdo distinto, não excluindo a liberdade de exercício, não se limitam
esses deveres a funcionalizar esse direito ou a tomar o seu exercício como
obrigatório, centram-se quanto a um único objectivo, embora abracem diferentes
formas de o alcançar. É o caso dos “direitos de solidariedade” (ou poligonais),
que “vivem juntos” tendo como função um interesse comum, procurando uma
protecção jurídica mais eficiente. Como refere VIEIRA DE ANDRADE, o nosso
direito ao ambiente, “enquadra-se
neste género, não se limitando ao direito à intervenção prestadora do Estado,
nem sequer à exigência do respeito por um bem próprio (individual) […]
implicando directamente com o tipo de comportamento de todos os indivíduos e
sendo exercido num quadro de reciprocidade e de solidariedade”, sendo que aqui começamos a verificar a autonomia de um dever fundamental ao respeito pelo ambiente, já que a transcrição é bastante elucidativa quanto à fisionomia do objecto deste estudo.
Chegados aqui, e atendendo ao que já fora concretizado, o que pensar? Podemos afirmar que temos, efectivamente, um dever fundamental de
respeito ao ambiente, directamente aplicável? Para autores como MARCELO REBELO
DE SOUSA e MELO ALEXANDRINO, em comentário ao art. 66 nº1 da CRP, entendem que estamos perante um dever fundamental
autónomo, não tendo como correspondente qualquer direito, pois entendem não
estarmos perante realidades paralelas, embora, tenham o ambiente como objecto.
Os referidos autores, entendem que este dever fundamental de respeitar o
ambiente engloba condutas autónomas que vão mais além no que toca à protecção
do bem jurídico ambiente, apesar dos efeitos horizontais decorrentes do art. 18
nº1 da CRP. Porém, convém sublinhar o seguinte, o direito fundamental ao
ambiente e o dever fundamental de respeito ao ambiente, apesar de autónomos na
sua fisionomia (sublinhe-se), estão associados, pois, tendo em conta o que se disse
supra, assim funcionam para dar a devida abrangência à tutela do bem
jurídico em causa, aglomerando várias realidades úteis para tal tarefa, para a
protecção de um bem comunitário. Para tal aproveitando a previsão expressa na disposição normativa em causa. Posto
nestes termos, podemos abranger a protecção (essencial) de espécies animais,
plantas, que por não serem titulares de quaisquer direitos fundamentais (por
não terem personalidade jurídica), manteriam o estatuto de simples coisa,
livremente modificável, livremente disponível, destruída. Ainda nestes termos,
TIAGO ANTUNES, na senda de VIEIRA DE ANDRADE e outros autores, vincam a
necessidade de pensar o direito ao ambiente e a sua protecção, subordinado ao
princípio da solidariedade inter-geracional, face às gerações que estão para
vir, mostra-se essencial uma tutela com esta amplitude. Melhor, por não existir
um direito das gerações futuras a um ambiente sustentável, sadio, limpo, a sua
protecção e manutenção para os vindouros, dependerá da subordinação dos presentes
a um respeito pelo ambiente como uma realidade amplamente rica em vida. Daí a
importância de se pensar o dever fundamental como um dever autónomo, que até
vem acrescentar realidades que não caberiam no manto do direito fundamental ao
ambiente (até numa perspectiva transnacional, transcontinental, pense-se na
poluição por cada país e os seus efeitos no ambiente. A tutela desses aspectos com a amplitude e profundidade que se pretende dar ao dever fundamental em estudo, seria uma "luz ao fundo do túnel" quanto à protecção destes factores que podem contribuir para uma afectação além fronteiras, embora vigorem Convenções sobre algumas realidades transnacionais).
Ainda
em relação à pergunta supra colocada, como tratar a aplicabilidade deste dever?
Será directamente aplicável? Para CASALTA NABAIS, VIEIRA DE ANDRADE e também
para GOMES CANOTILHO, ao contrário de JORGE MIRANDA (que admite a sua directa e
imediata aplicabilidade), nenhum dever fundamental é directamente aplicável,
pois não bastará a invocação de um preceito constitucional para o efeito, sendo
necessária a devida concretização para que os mesmos se tornem exequíveis na
ordem jurídica, através de lei que densifique, concretize os valores
decorrentes desses deveres fundamentais, prevendo mecanismos de coercibilidade
para quem não os observe. Apesar de serem estes deveres imperativos, só serão
levados em conta com a intervenção do legislador, estabelecendo consequências
pelo incumprimento. Como exemplo disso temos os vários diplomas legais que
impõe limites de emissão de gases poluentes, limites de ruído, limites quanto
ao exercício de actividades com produtos químicos, com as correspondentes
consequências pela inobservância das mesmas. Esta produção legislativa terá
sempre que partir da disposição que preveja o dever fundamental em causa, sob
pena de se resvalar para simples limites de direitos, impondo apenas deveres
legais e não fundamentais (condicionado pelo “carácter restritivo das
restrições”), já que como refere CASALTA NABAIS, à falta de uma cláusula aberta
de deveres fundamentais como faz o art. 16 da CRP com os direitos fundamentais,
deve-se partir da previsão expressa do mesmo, isto numa lógica garantistica do
preceito, i.e., de forma a evitar o funcionamento de algum tipo de cláusula geral implícita de deveres fundamentais.
3. Comentário final
Com
isto, cabe deixar uma última palavra quanto ao exposto. A necessidade de uma
maior protecção a todos os valores que compõe o bem jurídico ambiente
obriga-nos a pensar para além do presente, i.e., a necessidade e urgência de
antecipar consequências e soluções faz-nos procurar pelos melhores mecanismos
possíveis para enfrentar as constantes ameaças ao meio ambiente. Pensando num
dever fundamental nos termos expostos, permite-nos abranger várias realidades,
servindo de inspiração ao próprio legislador aquando a tomada de posição sobre
a matéria, ponderando, concretizando as melhores medidas para alcançar a
protecção possível, crescente, deste bem jurídico comunitário que é o ambiente.
Bibliografia:
- ANTUNES, Tiago, “Ambiente: um direito, mas também um dever” in Estudos em memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Volume II, Coimbra, 2005
- GOMES CANOTILHO, José, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Almedina, 7ª Edição, 2008
- MIRANDA, Jorge, “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV, Coimbra, 4ª Edição, 2008
- PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 2002
- VIEIRA DE ANDRADE, José, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, 4ª Edição, 2009
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