1. Um resgate da Administração na transição do Estado Liberal para o Estado Social.
A doutrina do direito constitucional, que se acopla
parcialmente ao próprio conceito de Estado na modernidade, apresenta
desenvolvimento histórico em períodos [01], que podem
categorizados como paradigmas [02]. Esses paradigmas, na lição
de Habermas [03], atuam como uma espécie de “pano de fundo não
temático”, intervindo na consciência de todos os atores político-sociais.
A sucessão histórica dos paradigmas do Estado passa
pela distinção entre as esferas pública e privada, na medida em que a tensão
existente entre essas duas áreas representa a discussão sobre o próprio papel
desempenhado pelo Estado na consolidação do direito e da sociedade. Essa tensão
público-privado se desenvolveu “desde o paradigma pré-moderno de direito (da
Antiguidade ao período anterior à Revolução Francesa) até a contemporaneidade,
momento em que desempenha papel central” [04].
A fase absolutista restou superada no final do Século
XVIII, período que ficou conhecido como “Era das Revoluções”, especialmente
através da diferenciação funcional e do surgimento das constituições
escritas [05]. A diferenciação funcional – que substituiu a
diferenciação da sociedade por estratos, então vigente – consiste na
organização da sociedade em sistemas especializados pela função [06] e
se articula com o fenômeno do surgimento das constituições escritas, justamente
por não prescindir de nova forma de controle do poder, que cambiou
estruturalmente.
E não se trata apenas do surgimento das constituições escritas, mas do próprio fenômeno (mais amplo) do constitucionalismo, que, segundo Michel Rosenfeld [07], se constitui pelo estabelecimento de limites ao poder político, pela adesão ao Estado de Direito e pela proteção de direitos fundamentais.
Assim, os Estados modernos, com o constitucionalismo
(através de constituições escritas, na maioria dos casos), passaram a
prescrever suas opções fundamentais, com previsão de estrutura política e
orgânica para fazer frente a essas escolhas. E tais opções fundamentais,
consagradas em constituições escritas, a partir da decisão da Suprema Corte dos
EUA no caso Marbuy v. Madison (1803), passaram a
vincular inclusive o legislador, através do mecanismo de controle de
constitucionalidade das leis.
Portanto, apresentada em síntese o nascimento do
constitucionalismo e das constituições escritas, volta-se à questão dos
paradigmas do Estado, na qual tem prelazia a tensão público-privado, que
representa discussão sobre o papel do Estado de Direito (pois aqui já
não há lugar para o Estado Absolutista, superado com as revoluções burguesas).
Na modernidade, o Estado Liberal representou o primeiro paradigma, cujo conteúdo tem fortes relações com o momento histórico. Nessa fase, localizada historicamente em momento imediatamente posterior à derrocada do Estado Absolutista (Século XVII), o Estado é visto com reservas, razão pela qual deve ter um conteúdo mínimo [08]. Como destaca Pinto [09], o Estado de Direito surge moldado pelo constitucionalismo clássico. Nesse paradigma que se destacam e se consagram as liberdades negativas, a igualdade formal, direitos que são opostos contra os Estado, direitos que reservam ao cidadão um círculo de não-intervenção estatal.
O princípio básico do Estado de Direito é impedir o arbítrio nos desempenho do poder público, com a conseqüente previsão de direitos/garantias dos cidadãos contra o próprio Estado.
Um considerável desnível entre a esfera pública e a
privada, portanto, é bastante compreensível nessa quadra histórica. Há no
paradigma do Estado Liberal uma hipertrofia da seara privada em detrimento da
esfera pública. A autonomia da vontade, materializada no contrato e na
liberdade para contratar, inerente agora à condição de indivíduo, simbolizam
bem esse paradigma, que consagra a igualdade (formal = todos são iguais perante
a lei). Nas palavras de Pinto [10], “O direito privado, por seu
turno, radicaliza a emancipação do indivíduo, fruto da modernidade. O elemento
central é o contrato, e são pressupostas as potencialidades e
capacidades de todo e qualquer indivíduo de firmar pactos, ser proprietário de
bens e ser regido por um sistema universal de leis gerais e abstratas”.
Para Menelick [11], “Essa idéia de
liberdade se assenta, obviamente, na propriedade, na idéia de igualdade de uma
sociedade que afirma que todos os seus membros são proprietários, no mínimo de
si próprios, pois ninguém pode ser propriedade de outrem e, assim, todos são
sujeitos de Direito”.
O panorama no qual surgiu o Estado Liberal e que o alicerçava, todavia, foi se alterando progressivamente. Na segunda metade do Século XIX, em processo agudizado com a Revolução Industrial, a sociedade transitou por grave crise, que repercutiu na crise do Estado Liberal e acelerou a mudança do paradigma, especialmente após a I Guerra Mundial, já no Século XIX. O modelo do Estado Liberal, que significou consideráveis avanços, não mais atendia aos anseios da sociedade – ao contrário, era co-responsável pela crise na qual ela estava inserida.
Os principais problemas dessa fase, que afetavam a maior parcela da população dos Estados de Direito, consistiam na desigualdade na distribuição da riqueza (e conseqüentemente do poder político). A maior parte da população não tinha acesso aos bens de consumo, a grande contradição da Revolução Industrial; ou seja, aquelas pessoas que trabalhavam na produção desses bens não estavam em condições de adquiri-los. Isso se acentuou drasticamente com a I Guerra Mundial e denotou a fragilidade de se garantir apenas liberdade negativa e igualdade formal e permitiu/demandou a ruptura do paradigma liberal.
Desse período (segunda metade do Século XIX), segundo Pinto [12], datam as primeiras manifestações sobre o estrito formalismo do paradigma liberal. Para fazer frente aos novos anseios e estancar as revoltas sociais, o Estado precisou se reformular. E o fez através de uma mudança de paradigma, no qual restou superado o Estado Liberal [13]. Surgia então o Estado Social, que já nasceu com as garantias liberais consagradas, mas carecendo de releitura. A esses direitos consagrados no paradigma anterior [14], o Estado Social acrescentou mais um rol de direitos, para atender às demandas do contexto histórico no qual surgiu e no qual estava inserido.
Portanto, não havia mais lugar para se entender a
liberdade como ausência de leis e a igualdade como igualdade apenas formal, e
sim para consagrar a igualdade material [15], através do
tratamento diferenciado pela lei para as pessoas que se encontravam em
condições materialmente distintas. Essa é justamente a síntese da crítica
reformista ao direito formal do Estado Liberal, que deu origem ao paradigma do
Estado Social.
Com o advento do Estado Social, nesse novo contexto social e econômico, houve sensível modificação na relação entre o poder público e o poder privado, com completa inversão dos pesos das duas esferas na configuração estatal. Se no paradigma do Estado Liberal exigia-se o Estado mínimo, se a sociedade tinha medo do estado e exigia dele apenas direitos de liberdade negativa e de igualdade formal, agora as demandas para o Estado são outras. É preciso que o Estado forneça condições materiais. O Estado passa a ser instrumento de acesso aos bens da vida.
No paradigma do Estado Social, há uma hipertrofia do
que é público, em detrimento da atrofia do privado, que passa ser identificado
com o egoísmo. O Estado cresce para atender às infinitas demandas sociais, para
ocupar o espaço que o paradigma liberal havia deixado como esfera de
não-intervenção. O público passa a ser identificado como Estatal. De acordo com
Pinto [16], “a delimitação entre direito público e direito
privado deixa de ser ontológica para assumir mera feição didático-pedagógica. A
rigor, todo direito é público no Estado Social.”.
2. A caracterização do surgimento de um Estado Ambiental na transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito.
O paradigma social entrou em crise justamente por não conseguir atender satisfatoriamente a toda essa sorte de demandas sociais [17]. E nessa tentativa de atender aos anseios sociais que lhe originaram, o Estado Social caminhou para o endividamento público, gerando instabilidade e crise econômica, agravada pela crise do petróleo dos anos 70. O Estado Social não conseguiu entregar o que prometeu e, na tentativa de fazê-lo, sacrificou valores que vão além da economia: para Pinto [18], a crise do Estado Social é, antes de tudo, uma crise de déficit de cidadania e de democracia, porque a identificação do público com o estatal restringiu a participação política ao voto e porque retrocedeu na diferenciação funcional [19].
O paradigma social propôs cidadania, mas gerou tudo
menos cidadania [20]. E a tentativa de superação da oposição entre
Estado Social e Estado Liberal, com o objetivo de estabelecer laços híbridos
entre os dois paradigmas, desencadeou uma compreensão reflexiva da
constituição [21].
O Estado Democrático de Direito é o paradigma que
surge com a crise do Estado Social. E fruto desse contexto histórico de
reconhecimento da complexidade social, acolhe e desenvolve uma série de novos
direitos, que superam a clássica distinção entre público e privado (pendendo
para um ou outro lado), para descolar o público do estatal e consagrar direitos
que não tem nem o privado nem o Estado como titular, e que obrigam Estado e
cidadão [22]. São os casos do direito ao ambiente equilibrado e
do direito das minorias. Pinto [23] sintetiza os
principais elementos desse paradigma: “A ênfase conferida ao paradigma
emergente concentra-ser na idéia de cidadania, compreendida em sentido
procedimental, de participação ativa. Como seria de se esperar na mudança
paradigmática, os direitos consagrados nos modelos anteriores de
constitucionalismo são redimensionados. Verificam-se, no interior da sociedade,
novas formas de associação: organizações não-governamentais, sociedades civis
de interesse público, redes de serviços não-verticalizadas.”.
Essa fase está estreitamente relacionada com os chamados direitos de terceira geração (ou dimensão), com ênfase na solidariedade social e intergeracional. Isso se dá por meio de uma readequação do público e do Estatal, mas também através do resgate de valores historicamente relacionados ao paradigma liberal, referentes às pretensões de autodeterminação, autonomia e liberdade. No Estado Democrático de Direito a tensão público-privado continua a existir, mas ela é parcialmente superada e equacionada pela idéia de que ambas as esferas devem ser complementares e eqüiprimordiais – e a “sobrevivência e a renovação do constitucionalismo … dependem, em grande parte, dessa relação complementar” [24].
Para Menelick [25], a esfera pública é muito mais ampla do que o Estado, a despeito de este se encontrar em seu centro. Isso porque o Estado não esgota o público e pode, a qualquer tempo, privatizá-lo.
Nesse paradigma do Estado Democrático de Direito, a
temática da cidadania apresenta protagonismo e é representada como um processo,
como direito de efetiva participação dos cidadãos na conformação das decisões
públicas [26]. E essa participação é justamente o processo que
legitima tais decisões. Aqui, “o jogo de gangorra entre os sujeitos de ação
privados e estatais é substituído pelas formas de comunicação mais ou menos
intactas das esferas privadas e públicas do mundo da vida, de um lado, e pelo
sistema político, de outro” [27].
É com esse redesenho das esferas pública e privada, do qual decorrem novos papéis para o Estado e para a sociedade, que surge o fenômeno do Estado Democrático de Direito Ambiental [28]; este, por sua vez, não representa propriamente um novo paradigma, mas é precisamente uma nova dimensão do Estado Democrático de Direito já consagrado no seio da sociedade complexa e de risco. A nota distintiva desse Estado Ambiental (que aponta para novas formas de participação política simbolizadas na expressão “Democracia Sustentada” [29]) é sua submissão aos princípios ecológicos (ao largo daqueles outros sociais e democráticos).
A qualificação de um Estado como “Estado Ambiental” aponta para duas dimensões jurídico-políticas particularmente relevantes. A primeira é a obrigação de o Estado, em cooperação com outros Estados e cidadãos ou grupos da sociedade civil, promover políticas públicas (económicas, educativas, de ordenamento) pautadas pelas exigências da sustentabilidade ecológica. A segunda relaciona-se com o dever de adopção de comportamentos públicos e privados amigos do ambiente de forma a dar expressão concreta à Assumpção da responsabilidade dos poderes públicos perante as gerações futuras.
Dentre os princípios ecológicos, é de se destacar o da
solidariedade intergeracional, que representa muito bem os elementos dessa
dimensão ambiental do Estado de Direito: trata-se de direito oponível contra o
Estado, mas também pelo Estado em face dos particulares; de titularidade
difusa, e nessa difusão se incluem principalmente aqueles que não podem se
defender por si – as futuras gerações. Mas também outros destacados princípios
estão na base do Estado Ambiental, como o da participação e o da cooperação com
a sociedade civil.
disponivel em: www.tutelaambiental.com
disponivel em: www.tutelaambiental.com
Referências bibliográficas
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de
Direito.Lisboa: Fundação Mário Soares, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado constitucional
ecológico e democracia sustentada. Estudos de direito constitucional em
homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003.
CARVALHO NETTO, Menelick. A contribuição do direito
administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos
fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno
exercício de teoria da constituição. Revista do Tribunal Superior do
Trabalho. Ano 68 – n.º 2. Porto Alegre: Editora Síntese, 2002.
Fensterseifer, Tiago. Direito fundamentais e
proteção do ambiente. Livraria do Advogado Editora, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre
faticidade e validade. Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003.
PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Arqueologia de uma
distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. O
novo direito administrativo brasileiro: o Estado, as agências e o terceiro
setor. Belo Horizonte: Fórum, 2003.
Sem comentários:
Enviar um comentário