Direito do Ambiente: eficácia
horizontal e a sua “dupla protecção” constitucional
Embora
se tratem de questões à partida diferentes, elas estão intimamente relacionadas
como adiante se irá verificar. Nessa medida, achamos por bem trata-las no mesmo
artigo.
O art.º
66º da Constituição da República Portuguesa foi introduzido pela constituição
de 1976 e foi sendo sucessivamente alterado nas revisões constitucionais de
1982, 1989 e 1997. Este direito fundamental, sistematicamente inserido no
Titulo III, “Direitos e Deveres económicos, sociais e culturais”, consagra, no
seu nº1, o direito ao ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente
equilibrado. Consagra também um dever, o de defender esse mesmo ambiente.
O primeiro
problema que nos cabe resolver é um problema comum aos direitos fundamentais:
têm estes direitos, e no caso concreto o direito fundamental ao ambiente, uma
eficácia horizontal? Quando se fala em eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, pretende-se demonstrar que estes direitos não regulam apenas as
relações verticais de poder que se estabelecem entre os cidadãos e o Estado,
mas também actuam nas relações entre pessoas e entidades privadas. Por exemplo,
se A, proprietário de uma pequena fábrica, poluir o ar, causando danos B que
vive a 200m da fábrica, poderá este invocar o direito fundamental ao ambiente,
disposto no artigo 66º CRP?
Nessa medida, num primeiro nível de análise, colocam-se uma
série de questões como:
·
Os Estados devem proteger os homens de outros
homens?
·
Quem são os destinatários dos direitos
fundamentais?
·
A quem eles obrigam?
·
Eles vinculam apenas os Estados ou podem também
vincular os particulares nas relações privadas? De que forma? Com que
intensidade? Em que limites?
A discussão sobre o tema iniciou-se na Alemanha, na década
de 50, e despertou, desde logo, uma intensa discussão que, mais tarde, se
estendeu a vários países como Portugal, Espanha, Itália, França, etc.
Depois de duas Guerras Mundiais, ditaduras e regimes
totalitaristas, ao olhar da tradição liberal, os direitos fundamentais,
enquanto garantias jurídicas, são pensados como uma dimensão meramente
negativa, tendo como destinatário exclusivo o Estado, que tem o dever de se
abster ou de não violar os direitos fundamentais.
Mais tarde, numa perspectiva contemporânea, a Constituição
já não se restringe a regular e limitar o poder do Estado, ou seja, a tutela
efectiva dos direitos fundamentais já não se esgota nessa dimensão negativa. O
Estado centra-se agora numa dimensão social do homem, e a protecção de direitos
fundamentais deve dar-se por meio do Estado, através de prestações positivas.
O ponto de partida, deve ser a análise das várias teorias,
que iremos referir de forma sucinta.
1.
Negação da Eficácias dos Direitos Fundamentais
nas Relações Privadas
As teorias
negativas são aquelas que, ainda fortemente apegadas ao ideário liberal,
rejeitam a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (países como a
suíça, Canadá e EUA).
Para os
defensores desta teoria, a eficácia horizontal destes direitos destrói a
autonomia individual, desfigura a identidade do Direito Privado, pois é
absorvido pelo Direito Constitucional e ainda confere um poder exagerado ao
poder Judicial (interpretação concretização e aplicação das normas), em
detrimento do legislativo democraticamente eleito.
2.
Teoria da Eficácia Indirecta e Mediata dos
Direitos Fundamentais na Esfera Privada
A teoria da
eficácia horizontal indirecta, mediata ou dualista foi idealizada por Günther
Dürig, na Alemanha, em 1956. Ela representa um meio-termo ou uma mediação entre
aquelas que negam qualquer vinculatividade dos particulares aos direitos
fundamentais nas relações privadas e aquelas que a admitem directamente.
Para
esta teoria, os direitos fundamentais são direitos de defesa da liberdade
contra o poder estatal, não se justificando que vinculem também os
particulares. Contudo, o Estado, enquanto sujeito passivo de direitos
fundamentais, tem o dever de protegê-los contras ataques provenientes de entidades
privadas: dando-se essa protecção não por aplicação directa da Constituição mas
por meio do Direito Privado.
Os preceitos
constitucionais devem servir como princípio de interpretação das cláusulas
gerais e conceitos indeterminados. Ao legislador Privado, este, sim,
directamente vinculado aos direitos fundamentais, cabe a tarefa de mediar a
aplicação desses direitos nas relações privadas, num cotejo entre valores
constitucionais e autonomia privada.
O juiz, na
solução de conflitos entre particulares, estaria vinculado a esse equilíbrio já
feito pelo legislador, cabendo-lhe aplicar as cláusulas gerais ditadas pelo
legislativo e interpretar os conceitos indeterminados conforme a Constituição
(efeito irradiação: Caso Lüth, 1ª vez reconhecido pelo TC alemão, em 1950 –
apelo por rádio para que se boicotasse um determinado filme cujo director tinha
produzido, anteriormente uma obra anti-semita; Tribunal civil: acto ilícito,
ofensivo aos bons constumes; TC: liberdade de expressão). O juiz não pode
aplicar directamente os direitos fundamentais previstos na Constituição para
resolver conflitos interprivados mesmo que não exista lei ordinária que regule
essa situação ou que o faça de modo insuficiente.
Assim, para os
seus defensores, esta teoria é mais harmónica com a democracia e com o
princípio da repartição de poderes.
3.
Teoria da Eficácia Directa e Imediata dos
Direitos Fundamentais na Esfera Privada
Os defensores
da doutrina da eficácia directa, imediata ou monista dos direitos fundamentais
nas relações privadas, vêem-na como um mecanismo essencial para corrigir as
desigualdades sociais, pois as ameaças não advêm somente do Estado, mas também
dos chamados poderes sociais, grupos sociais que detêm, nas sociedades de
massa, uma parcela cada vez maior de poder social e económico.
Portanto, os direitos
fundamentais já não têm no Estado o seu inimigo exclusivo, sendo que as
ameaças, por vezes até mais graves, provêm, também, de poderes privados, de
outros particulares e, nessa medida, faz sentido que o Estado não seja o único
destinatário.
Esta teoria
foi defendida, no início da década de 50, por Hans Carl Nipperdey. Para este
autor, o perigo não surge só da figura do Estado, mas também de grupos sociais,
que detêm na sociedade hiper-complexa de massas uma parcela cada vez maior do
poder social e económico que se põe aos indivíduos e que é capaz de afectar
aspectos relevantes da sua vida e personalidade.
No direito
português a doutrina maioritária segue esta teoria: Ana Prata, Vieira de
Andrade, José João Nunes Abrantes, J.J. Gomes Canotilho, Vasco Pereira da
Silva.
Gomes Canotilho: É a favor
da vinculação directa dos direitos fundamentais nas relações entre particulares
não apenas nas relações sociais. Não pode ser deixado de lado a desigualdade na
relação jurídica quando se calibra a intensidade da eficácia horizontal de tais
direitos: existe um “núcleo irredutível de autonomia pessoal” que não pode ser
sacrificado em razão da extensão ao campo privado dos direitos fundamentais.
José João Abrantes: Pode
haver dois tipos de situações: Nas relações privadas entre sujeitos desiguais,
os direitos fundamentais são aplicados nos mesmos termos que se aplicam nas
relações entre o indivíduo e os poderes estaduais; Nas relações entre
indivíduos que estão pelo menos tendencialmente em posição de igualdade, a
aplicação directa dos preceitos resume-se à garantia do respectivo conteúdo
mínimo essencial, podendo ceder perante a liberdade negocial na medida em que
tal conteúdo mínimo não seja afectado.
Vieira de Andrade: Quando
for manifesta a desigualdade de poder entre as partes, e uma delas estiver
subordinada em relação à outra, a primeira fica detentora de direitos
subjectivos fundamentais oponíveis à segunda, sem excluir os direitos
fundamentais da segunda, devendo proceder a uma ponderação entre os direitos
invocados pela parte jurídica mais frágil.
Vasco Pereira da Silva:
Por detrás desta discussão acerca da aplicabilidade mediata ou imediata dos
direitos fundamentais, o que realmente se procura é regular as concretas
situações da vida, ou seja, a mera necessidade de conciliação dos direitos
fundamentais com os princípios fundamentais de direito privado, quer essa
regulação se verifique através da mediação de normas ordinárias, quer se
verifique imediatamente.
Juan María Bilbao Ubillos:
não é possível afirmar a priori se um direito fundamental vincula ou não os
particulares, bem assim a sua extensão, pois alguns direitos fundamentais, pela
sua própria estrutura, pressupõem uma eficácia horizontal imediata (liberdade
de expressão, objecção de consciência, honra, liberdade de religião,
privacidade). Outros pela sua natureza, vinculam só o Estado.
Outras teorias, como a teoria Deveres
de Protecção, as teorias alternativas Jürger Schwabe e Robert Alexy ou a teoria
do State Action, podiam ser
referidas. Mas dada a extensão deste artigo e a menor importância e adesão a
estas teorias colocamo-las, portanto, de parte.
Importa agora esclarecer, na
nossa opinião, se os direitos fundamentais se projectam nas relações
jusprivatísticas, e em caso afirmativo, de que forma, com que intensidade e em
que limites se dá essa vinculação e qual é o papel e a responsabilidade do
Estado nesse contexto.
Primeiro, não nos parece
aceitável recusar qualquer eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. É verdade que alguns direitos fundamentais, pela sua natureza,
têm apenas o Estado como seu destinatário. Outros destinam-se a regular
directamente relações privadas (direito à inviolabilidade do domicílio, direito
ao sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, e no âmbito dos
direitos sociais, os direitos dos trabalhadores, cujos destinatários são os
empregadores).
Num mundo em que as ameaças e as agressões à liberdade ou a
outros bens tutelados pelos direitos fundamentais, já não provêm exclusivamente
do Estado, mas também ou até mais gravemente, de poderes sociais ou privados,
cujas relações se estabelecem em condições assimétricas de força, não se mostra
minimamente coerente que tal sistema de garantias (Estado Constitucional
Democrático) se circunscreva à concepção de impedir o Estado dessas violações,
deixando tudo o mais a descoberto, como se a liberdade comportasse uma divisão,
como se ela não fosse una e como se a única parte juridicamente relevante dessa
liberdade fosse aquela ameaça de violação por parte dos poderes públicos.
Quanto a tese mediata, imediata e dos deveres de protecção,
todos perfilham a ideia de que cabe ao legislador, em primeira linha, ditar as
regras de convivência e compatibilizar as esferas de autonomia e liberdade; e
que cabe ao juiz dizer se as posições normativas do legislador, de acordo com a
Constituição, são ou não aceitáveis.
O dissenso entre essas doutrinas está nas hipóteses em que
não há lei que regule uma situação ou, existindo, seja insuficiente ou
apresente um deficit para a solução de conflito entre particulares, porque
implicará reconhecer que os particulares, nas suas relações interprivadas,
estão vinculados pelos direitos fundamentais, ou seja, que estes têm eficácia
imediata nas relações privadas.
No que diz respeito à teoria
mediata, cabe-nos fazer esta crítica: em primeiro lugar, não explica a
existência de normas constitucionais que reconhecem direitos fundamentais
destinados a regular ou a serem aplicados exactamente às relações privadas
(tutelam a família, casamento, educação, direito de greve, direito de
associação sindical, liberdade de expressão, liberdade religiosa). Em segundo
lugar, é insuficiente para dar uma adequada protecção aos direitos fundamentais
porque coloca a concretização de tais direitos na dependência do legislador
ordinário e não admite que na ausência do legislador, o juiz lance mão
directamente da Constituição para resolver conflitos. Nesse caso, faz sentido o
juiz poder recusar-se a aplicar a Constituição só porque o legislador não
regulou determinada situação? Não! Por último, no Ordenamento Português parece
não ser defensável uma vez que a CRP no
artigo 18º/1 está prevista a vinculação directa das entidades privadas aos
direitos fundamentais.
Por todas as razões apresentadas,
parece-nos que a Teoria Directa é aquela que mais satisfatoriamente tutela os
direitos fundamentais e que melhor se molda a uma ordem jurídica estruturada
sob o primado da dignidade humana. As críticas que são frequentemente feitas a
esta tese centram-se, essencialmente, no âmbito da autonomia privada e da
repartição de poderes.
Quanto à autonomia privada, como
afirmam Gomes Canotilho e Vieira de Andrade, a autonomia do Direito Privado não
significa independência face à Constituição, que tem hoje como tarefa a
garantia e a unidade do ordenamento jurídico. A autonomia privada não pode ser
concebida como princípio de valor absoluto, ao ponto de justificar qualquer
arbitrariedade. Com isto não se pretende dizer que a autonomia privada pode ser
limitada de forma irracional e a qualquer custo. Não é isso! O que propomos é
que quanto maior a desigualdade de facto entre os sujeitos de uma relação
privada, maior será a margem de autonomia cujo sacrifício o sistema jurídico
admite. Quanto menor a liberdade da parte mais débil da relação, maior a
necessidade da sua protecção. No relacionamento entre iguais deve-se impor um
mínimo irredutível por livre disposição dos envolvidos (por isso é que o Estado
pode e deve proibir o comércio de órgãos humanos).
Quanto à repartição de poderes
entendemos que tendo o legislador sido omisso ou deficiente, não é possível
invocar o principio da repartição de poderes como impeditivo para que os juízes
e tribunais não protejam o principio da dignidade humana. O que é imperativo é que se assegure, ao legislativo, a primazia
na introdução da legalidade jurídica. Se essa introdução não for feita ou for
omissa, cabe ao controle jurisdicional. É verdade que, na prática, a primazia
do legislativo em caso de omissão possa ser questionada. Contudo, não temos
qualquer dúvida que seria muito mais prejudicial proibir qualquer intervenção
do juiz em caso de omissão do legislador, pois estar-se-ia a permitir situações
que violaria a própria dignidade humana.
Posto isto, e admitindo a
eficácia directa dos direitos fundamentais e, portanto, do direito ao Ambiente,
cabe-nos agora tratar da sua dupla protecção constitucional.
O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva defende que estes direitos
possuem uma dupla natureza pois, por um lado, são direitos subjectivos e, por
outro, constituem elementos fundamentais da ordem objectiva da comunidade.
Na sua vertente subjectiva garante-se a adequada defesa contra agressões
ilegais na esfera individual protegida pelas normas constitucionais, pois os
direitos fundamentais constituem posições substantivas de vantagem dos
indivíduos dirigidas contra o Estado e contra entidades privadas.
Na sua
vertente objectiva, é uma tarefa do Estado a tutela do ambiente, proclamada
constitucionalmente no artigo 9º alínea d), “Promoção do bem estar e a
qualidade de vida do povo e (…) efectivação dos direitos (…) ambientais”, e
alínea e), “(…) defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos
naturais (…)”. A norma estabelece metas a atingir pelo Estado através dos seus
diversos poderes ou seja, pretende-se um estado activo na garantia dos direitos
ambientais e não um estado passivo, com meras condutas abstencionistas.
Em
1997 com a introdução da adenda “efectivação dos direitos económicos, sociais,
culturais e ambientais”, na aliena d), foi reforçado o principio do Estado do
Direito ambiental. Destaca-se a colocação do direito ambiental no mesmo nível
de outros direitos económicos, sociais e culturais.
Em suma, o tratamento constitucional do ambiente goza de uma “dupla
protecção”, a defesa a nível individual e a sua imperatividade perante o
ordenamento jurídico e a vida na sociedade.
·
Vasco Pereira da Silva, “Verde Cor de
Direito”, Almedina, Lisboa 2005
·
Vieira de Andrade, “Os direitos
fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, 2010.
·
Jorge Miranda, “Manual de direito
constitucional”, Tomo IV, 2ª edição, Coimbra editora, 1998
·
José Joaquim Gomes
Canotilho, “Estudos Sobre
Direitos Fundamentais”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2008
·
Pinto, Sílvia Regina Becker, A eficácia
horizontal dos direitos fundamentais : uma perspectiva sobre as
relações jurídicas privadas, Relatório de Doutoramento, 2007, Lisboa
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