segunda-feira, 21 de maio de 2012

Direito do Ambiente: eficácia horizontal e a sua “dupla protecção” constitucional


Direito do Ambiente: eficácia horizontal e a sua “dupla protecção” constitucional

                Embora se tratem de questões à partida diferentes, elas estão intimamente relacionadas como adiante se irá verificar. Nessa medida, achamos por bem trata-las no mesmo artigo.
                O art.º 66º da Constituição da República Portuguesa foi introduzido pela constituição de 1976 e foi sendo sucessivamente alterado nas revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997. Este direito fundamental, sistematicamente inserido no Titulo III, “Direitos e Deveres económicos, sociais e culturais”, consagra, no seu nº1, o direito ao ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Consagra também um dever, o de defender esse mesmo ambiente.

                O primeiro problema que nos cabe resolver é um problema comum aos direitos fundamentais: têm estes direitos, e no caso concreto o direito fundamental ao ambiente, uma eficácia horizontal? Quando se fala em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, pretende-se demonstrar que estes direitos não regulam apenas as relações verticais de poder que se estabelecem entre os cidadãos e o Estado, mas também actuam nas relações entre pessoas e entidades privadas. Por exemplo, se A, proprietário de uma pequena fábrica, poluir o ar, causando danos B que vive a 200m da fábrica, poderá este invocar o direito fundamental ao ambiente, disposto no artigo 66º CRP?
Nessa medida, num primeiro nível de análise, colocam-se uma série de questões como:
·         Os Estados devem proteger os homens de outros homens?
·         Quem são os destinatários dos direitos fundamentais?
·         A quem eles obrigam?
·         Eles vinculam apenas os Estados ou podem também vincular os particulares nas relações privadas? De que forma? Com que intensidade? Em que limites?

A discussão sobre o tema iniciou-se na Alemanha, na década de 50, e despertou, desde logo, uma intensa discussão que, mais tarde, se estendeu a vários países como Portugal, Espanha, Itália, França, etc.
Depois de duas Guerras Mundiais, ditaduras e regimes totalitaristas, ao olhar da tradição liberal, os direitos fundamentais, enquanto garantias jurídicas, são pensados como uma dimensão meramente negativa, tendo como destinatário exclusivo o Estado, que tem o dever de se abster ou de não violar os direitos fundamentais.
Mais tarde, numa perspectiva contemporânea, a Constituição já não se restringe a regular e limitar o poder do Estado, ou seja, a tutela efectiva dos direitos fundamentais já não se esgota nessa dimensão negativa. O Estado centra-se agora numa dimensão social do homem, e a protecção de direitos fundamentais deve dar-se por meio do Estado, através de prestações positivas.
O ponto de partida, deve ser a análise das várias teorias, que iremos referir de forma sucinta.

1.       Negação da Eficácias dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas
As teorias negativas são aquelas que, ainda fortemente apegadas ao ideário liberal, rejeitam a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (países como a suíça, Canadá e EUA).
Para os defensores desta teoria, a eficácia horizontal destes direitos destrói a autonomia individual, desfigura a identidade do Direito Privado, pois é absorvido pelo Direito Constitucional e ainda confere um poder exagerado ao poder Judicial (interpretação concretização e aplicação das normas), em detrimento do legislativo democraticamente eleito.

2.       Teoria da Eficácia Indirecta e Mediata dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada
A teoria da eficácia horizontal indirecta, mediata ou dualista foi idealizada por Günther Dürig, na Alemanha, em 1956. Ela representa um meio-termo ou uma mediação entre aquelas que negam qualquer vinculatividade dos particulares aos direitos fundamentais nas relações privadas e aquelas que a admitem directamente.
        Para esta teoria, os direitos fundamentais são direitos de defesa da liberdade contra o poder estatal, não se justificando que vinculem também os particulares. Contudo, o Estado, enquanto sujeito passivo de direitos fundamentais, tem o dever de protegê-los contras ataques provenientes de entidades privadas: dando-se essa protecção não por aplicação directa da Constituição mas por meio do Direito Privado.
Os preceitos constitucionais devem servir como princípio de interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados. Ao legislador Privado, este, sim, directamente vinculado aos direitos fundamentais, cabe a tarefa de mediar a aplicação desses direitos nas relações privadas, num cotejo entre valores constitucionais e autonomia privada.
O juiz, na solução de conflitos entre particulares, estaria vinculado a esse equilíbrio já feito pelo legislador, cabendo-lhe aplicar as cláusulas gerais ditadas pelo legislativo e interpretar os conceitos indeterminados conforme a Constituição (efeito irradiação: Caso Lüth, 1ª vez reconhecido pelo TC alemão, em 1950 – apelo por rádio para que se boicotasse um determinado filme cujo director tinha produzido, anteriormente uma obra anti-semita; Tribunal civil: acto ilícito, ofensivo aos bons constumes; TC: liberdade de expressão). O juiz não pode aplicar directamente os direitos fundamentais previstos na Constituição para resolver conflitos interprivados mesmo que não exista lei ordinária que regule essa situação ou que o faça de modo insuficiente.
Assim, para os seus defensores, esta teoria é mais harmónica com a democracia e com o princípio da repartição de poderes.

3.       Teoria da Eficácia Directa e Imediata dos Direitos Fundamentais na Esfera Privada
Os defensores da doutrina da eficácia directa, imediata ou monista dos direitos fundamentais nas relações privadas, vêem-na como um mecanismo essencial para corrigir as desigualdades sociais, pois as ameaças não advêm somente do Estado, mas também dos chamados poderes sociais, grupos sociais que detêm, nas sociedades de massa, uma parcela cada vez maior de poder social e económico.
Portanto, os direitos fundamentais já não têm no Estado o seu inimigo exclusivo, sendo que as ameaças, por vezes até mais graves, provêm, também, de poderes privados, de outros particulares e, nessa medida, faz sentido que o Estado não seja o único destinatário.
Esta teoria foi defendida, no início da década de 50, por Hans Carl Nipperdey. Para este autor, o perigo não surge só da figura do Estado, mas também de grupos sociais, que detêm na sociedade hiper-complexa de massas uma parcela cada vez maior do poder social e económico que se põe aos indivíduos e que é capaz de afectar aspectos relevantes da sua vida e personalidade.
No direito português a doutrina maioritária segue esta teoria: Ana Prata, Vieira de Andrade, José João Nunes Abrantes, J.J. Gomes Canotilho, Vasco Pereira da Silva.
Gomes Canotilho: É a favor da vinculação directa dos direitos fundamentais nas relações entre particulares não apenas nas relações sociais. Não pode ser deixado de lado a desigualdade na relação jurídica quando se calibra a intensidade da eficácia horizontal de tais direitos: existe um “núcleo irredutível de autonomia pessoal” que não pode ser sacrificado em razão da extensão ao campo privado dos direitos fundamentais.
José João Abrantes: Pode haver dois tipos de situações: Nas relações privadas entre sujeitos desiguais, os direitos fundamentais são aplicados nos mesmos termos que se aplicam nas relações entre o indivíduo e os poderes estaduais; Nas relações entre indivíduos que estão pelo menos tendencialmente em posição de igualdade, a aplicação directa dos preceitos resume-se à garantia do respectivo conteúdo mínimo essencial, podendo ceder perante a liberdade negocial na medida em que tal conteúdo mínimo não seja afectado.
Vieira de Andrade: Quando for manifesta a desigualdade de poder entre as partes, e uma delas estiver subordinada em relação à outra, a primeira fica detentora de direitos subjectivos fundamentais oponíveis à segunda, sem excluir os direitos fundamentais da segunda, devendo proceder a uma ponderação entre os direitos invocados pela parte jurídica mais frágil.
Vasco Pereira da Silva: Por detrás desta discussão acerca da aplicabilidade mediata ou imediata dos direitos fundamentais, o que realmente se procura é regular as concretas situações da vida, ou seja, a mera necessidade de conciliação dos direitos fundamentais com os princípios fundamentais de direito privado, quer essa regulação se verifique através da mediação de normas ordinárias, quer se verifique imediatamente.
Juan María Bilbao Ubillos: não é possível afirmar a priori se um direito fundamental vincula ou não os particulares, bem assim a sua extensão, pois alguns direitos fundamentais, pela sua própria estrutura, pressupõem uma eficácia horizontal imediata (liberdade de expressão, objecção de consciência, honra, liberdade de religião, privacidade). Outros pela sua natureza, vinculam só o Estado.

Outras teorias, como a teoria Deveres de Protecção, as teorias alternativas Jürger Schwabe e Robert Alexy ou a teoria do State Action, podiam ser referidas. Mas dada a extensão deste artigo e a menor importância e adesão a estas teorias colocamo-las, portanto, de parte.

Importa agora esclarecer, na nossa opinião, se os direitos fundamentais se projectam nas relações jusprivatísticas, e em caso afirmativo, de que forma, com que intensidade e em que limites se dá essa vinculação e qual é o papel e a responsabilidade do Estado nesse contexto.
Primeiro, não nos parece aceitável recusar qualquer eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. É verdade que alguns direitos fundamentais, pela sua natureza, têm apenas o Estado como seu destinatário. Outros destinam-se a regular directamente relações privadas (direito à inviolabilidade do domicílio, direito ao sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, e no âmbito dos direitos sociais, os direitos dos trabalhadores, cujos destinatários são os empregadores).
Num mundo em que as ameaças e as agressões à liberdade ou a outros bens tutelados pelos direitos fundamentais, já não provêm exclusivamente do Estado, mas também ou até mais gravemente, de poderes sociais ou privados, cujas relações se estabelecem em condições assimétricas de força, não se mostra minimamente coerente que tal sistema de garantias (Estado Constitucional Democrático) se circunscreva à concepção de impedir o Estado dessas violações, deixando tudo o mais a descoberto, como se a liberdade comportasse uma divisão, como se ela não fosse una e como se a única parte juridicamente relevante dessa liberdade fosse aquela ameaça de violação por parte dos poderes públicos.
Quanto a tese mediata, imediata e dos deveres de protecção, todos perfilham a ideia de que cabe ao legislador, em primeira linha, ditar as regras de convivência e compatibilizar as esferas de autonomia e liberdade; e que cabe ao juiz dizer se as posições normativas do legislador, de acordo com a Constituição, são ou não aceitáveis.
O dissenso entre essas doutrinas está nas hipóteses em que não há lei que regule uma situação ou, existindo, seja insuficiente ou apresente um deficit para a solução de conflito entre particulares, porque implicará reconhecer que os particulares, nas suas relações interprivadas, estão vinculados pelos direitos fundamentais, ou seja, que estes têm eficácia imediata nas relações privadas.
No que diz respeito à teoria mediata, cabe-nos fazer esta crítica: em primeiro lugar, não explica a existência de normas constitucionais que reconhecem direitos fundamentais destinados a regular ou a serem aplicados exactamente às relações privadas (tutelam a família, casamento, educação, direito de greve, direito de associação sindical, liberdade de expressão, liberdade religiosa). Em segundo lugar, é insuficiente para dar uma adequada protecção aos direitos fundamentais porque coloca a concretização de tais direitos na dependência do legislador ordinário e não admite que na ausência do legislador, o juiz lance mão directamente da Constituição para resolver conflitos. Nesse caso, faz sentido o juiz poder recusar-se a aplicar a Constituição só porque o legislador não regulou determinada situação? Não! Por último, no Ordenamento Português parece não ser defensável uma vez  que a CRP no artigo 18º/1 está prevista a vinculação directa das entidades privadas aos direitos fundamentais.

Por todas as razões apresentadas, parece-nos que a Teoria Directa é aquela que mais satisfatoriamente tutela os direitos fundamentais e que melhor se molda a uma ordem jurídica estruturada sob o primado da dignidade humana. As críticas que são frequentemente feitas a esta tese centram-se, essencialmente, no âmbito da autonomia privada e da repartição de poderes.
Quanto à autonomia privada, como afirmam Gomes Canotilho e Vieira de Andrade, a autonomia do Direito Privado não significa independência face à Constituição, que tem hoje como tarefa a garantia e a unidade do ordenamento jurídico. A autonomia privada não pode ser concebida como princípio de valor absoluto, ao ponto de justificar qualquer arbitrariedade. Com isto não se pretende dizer que a autonomia privada pode ser limitada de forma irracional e a qualquer custo. Não é isso! O que propomos é que quanto maior a desigualdade de facto entre os sujeitos de uma relação privada, maior será a margem de autonomia cujo sacrifício o sistema jurídico admite. Quanto menor a liberdade da parte mais débil da relação, maior a necessidade da sua protecção. No relacionamento entre iguais deve-se impor um mínimo irredutível por livre disposição dos envolvidos (por isso é que o Estado pode e deve proibir o comércio de órgãos humanos).
Quanto à repartição de poderes entendemos que tendo o legislador sido omisso ou deficiente, não é possível invocar o principio da repartição de poderes como impeditivo para que os juízes e tribunais não protejam o principio da dignidade humana. O que é imperativo é que se assegure, ao legislativo, a primazia na introdução da legalidade jurídica. Se essa introdução não for feita ou for omissa, cabe ao controle jurisdicional. É verdade que, na prática, a primazia do legislativo em caso de omissão possa ser questionada. Contudo, não temos qualquer dúvida que seria muito mais prejudicial proibir qualquer intervenção do juiz em caso de omissão do legislador, pois estar-se-ia a permitir situações que violaria a própria dignidade humana.

Posto isto, e admitindo a eficácia directa dos direitos fundamentais e, portanto, do direito ao Ambiente, cabe-nos agora tratar da sua dupla protecção constitucional.
O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva defende que estes direitos possuem uma dupla natureza pois, por um lado, são direitos subjectivos e, por outro, constituem elementos fundamentais da ordem objectiva da comunidade.
Na sua vertente subjectiva garante-se a adequada defesa contra agressões ilegais na esfera individual protegida pelas normas constitucionais, pois os direitos fundamentais constituem posições substantivas de vantagem dos indivíduos dirigidas contra o Estado e contra entidades privadas.
Na sua vertente objectiva, é uma tarefa do Estado a tutela do ambiente, proclamada constitucionalmente no artigo 9º alínea d), “Promoção do bem estar  e a qualidade de vida do povo e (…) efectivação dos direitos (…) ambientais”, e alínea e), “(…) defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais (…)”. A norma estabelece metas a atingir pelo Estado através dos seus diversos poderes ou seja, pretende-se um estado activo na garantia dos direitos ambientais e não um estado passivo, com meras condutas abstencionistas.

           Em 1997 com a introdução da adenda “efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais”, na aliena d), foi reforçado o principio do Estado do Direito ambiental. Destaca-se a colocação do direito ambiental no mesmo nível de outros direitos económicos, sociais e culturais.

Em suma, o tratamento constitucional do ambiente goza de uma “dupla protecção”, a defesa a nível individual e a sua imperatividade perante o ordenamento jurídico e a vida na sociedade.











·         Vasco Pereira da Silva, “Verde Cor de Direito”, Almedina, Lisboa 2005
·         Vieira de Andrade, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, 2010.
·         Jorge Miranda, “Manual de direito constitucional”, Tomo IV, 2ª edição, Coimbra editora, 1998
·         José Joaquim Gomes Canotilho, Estudos Sobre Direitos Fundamentais”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2008
·         Pinto, Sílvia Regina Becker, A eficácia horizontal dos direitos fundamentais : uma perspectiva sobre as relações jurídicas privadas, Relatório de Doutoramento, 2007, Lisboa

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