domingo, 20 de maio de 2012

Poluição por hidrocarbonetos


O acidente do Torrey Canion fez com que, perante este tipo de acidentes, para as quais as várias legislações nacionais não se encontravam preparadas, se ouvissem reacções do mundo do direito. No que concerne à área da responsabilidade, a resposta veio surgir com a Convenção internacional de Bruxelas, de direito privado sobre a responsabilidade pelos juízos devidos à poluição por hidrocarbonetos de 29 de Novembro de 1969.
Trata-se de uma convenção internacional de direito uniforme, destinada a unificar o regime de indemnização da responsabilidade civil pelo causado derramamento de hidrocarbonetos no mar. Embora, no decurso dos debates, não tenha sido esquecida a temática ambiental e respetivas preocupações, a verdade é que estas encontram-se em segundo plano no texto de 1969; no de 1992, as coisas não são, substancialmente, diferentes.

A convenção de Bruxelas de 1969, objeto de importantes alterações, através do Protocolo de Londres de 1992, veio disciplinar alguns dos aspetos centrais da temática da responsabilidade civil resultante da poluição marítima causada pelo derramamento de hidrocarbonetos no mar, por navios ou a partir dos mesmos e, muito em particular, a conexa com a respetiva dimensão indemnizatória.

O que acaba de ser referido conferiu à CLC/69 um papel central como texto que, embora concebido para lhes fazer face, procedia a partir duma perspetiva de dano de montante elevado, mas não de dano catastrófico. Assim, embora não pensado para esta última situação, era suscetível de lidar com ela. A meu ver, isso deve-se à adoção do instituto da responsabilidade civil como resposta para as mesmas. Ao longo dos anos, o seu papel foi reforçado. Os vários incidentes ocorridos com petroleiros permitiram o reconhecimento de que, com os mesmos, faz-se frente a uma dupla realidade. Por outro lado, dada a extensão dos danos causados (tanto no sentido da sua extensão geográfica, como na gravidade das situações em causa) mostrou insuficiência nos mecanismo ressarcitórios colocados ao alcance dos lesados, para conduzir à reparação razoável das situações ocorridas, carecidas de indemnização. Por outro lado, relativamente aos danos ocorridos, tornou-se mais patente que entre os mesmos não se encontravam, tão só, danos caracterizados por uma natureza puramente individual. Pelo contrário, tais danos atingiram bens que pertenciam a todos, mesmo dos que, porventura, estivessem bem afastados do local do sinistro.
Em suma, o dano ambiental procurava penetrar no mundo do shipping. Mais de trinta anos passados, após a sua redação, esse papel foi reforçado. O desastre do Amoco Cadiz, com efeito, permitiu o reconhecimento de uma dupla realidade. Por um lado, dada a extensão dos danos causados, tanto no sentido da sua extensão geográfica, como no da gravidade das situações em causa, mostrou a insuficiência dos mecanismos ressarcitórios até então colocados ao alcance dos lesados, para conduzir à reparação razoável das situações ocorridas, carecidas de indemnização. Por outro lado, permitiu equacionar, como questão central, a opção pela canalização como aspeto decisivo para, no plano jurídico, proporcionar às vítimas indemnizações pelos danos sofridos. Com efeito, reconhecida a peculiaridade do condicionalismo que rodeia este tipo de eventos, aceite a especificidade do tipo de lesões que causa, admitida a especial natureza do risco presente, apurada a extraordinária dimensão monetária dos danos, haverá que retirar a conclusão de que o fenómeno deixou de revestir natureza puramente nacional. Ao ver-se aqui mais uma manifestação da atividade poluidora, a dimensão jurídica internacional do fenómeno passou a recortar-se de forma mais visível.


Como recentemente foi observado, «progressivamente os «media» representaram as vozes das populações locais como que proporcionando relatos de confiança juntamente com os peritos científicos». Ou seja, inicialmente, tratava-se de uma questão de conservação da natureza tendo-se tornado, posteriormente, sem perder esses iniciais contornos, numa matéria jurídica, a saber a de determinar a quem pertencia a obrigação, emergente de responsabilidade civil extra-contratual, de indemnizar os prejuízos decorrentes do sucedido. Indo mais longe neste caminho, dois autores notam que bem vistas as coisas, a causa do lucro cessante do hoteleiro não é tanto a maré negra, «...mas as informações da imprensa que deram conhecimento da mesma e as reacções das agências de viagem».
A estas duas dimensões acresceu, posteriormente, mas agora no plano sociológico, o facto de toda essa temática, para alguns autores, poder integrar, ainda algo a ser «...compreendido como integrado a modernidade tardia», temática tão perto da sociedade de risco. Estas alterações, na forma de considerar, tanto o fenómeno da poluição como o das consequências, acentuaram a perspetiva que via neste eventos fonte de danos ressarcir. Os incidentes de poluição, visionados como desastres de natureza científica (caso do Torrey Canyon), ampliados os seus efeitos pela ação dos media (caso do Amoco Cadiz ou do Exxon Valdez), acabaram, enfim, por ser considerados como mais uma ilustração características das sociedades industriais comtemporâneas enquanto sociedades de risco. A verdade é que o aumento da tonelagem dos navios-tanque afetos a este tipo de transporte bem como o alargamento contínuo, desde há decénios, do transporte marítimo desta mercadoria, potenciou o crescimento do número de acidentes, o acréscimo da sua gravidade, o número de lesados e o custo dos danos a reparar. Este circunstacialismo fez acrescer o enquadramento jurídico deste tipo de eventos, uma outra ordem de tematização na qual estes passam a ser encarados como mais uma das manifestações do fenómeno da poluição do meio ambiente causada pelo homem, tido correndo para, os mesmos, ser atribuída uma nova e, até esse momento, insuspeita dimensão. Na verdade passa a ser encarado, não apenas, como qualquer outro acto ilícito, mas ainda como mais um facto possível de integrador da sociedade de risco, expressão, cunhada e utilizada muito após o aparecimento do condicionalismo que pretendia designar (1-2) e com natureza centuadamente sociológica. Posta a questão desta forma, haverá que reconhecer que a elaboração jurisprudencial da CLC pode desenvolver-se, igualmente, nesta mesma maneira de encarar a poluição marítima como mais uma manifestação da sociedade de risco. No nosso contexto, é oportuno recordar, com um importante teorizador desta temática, Ulrich Beck, ser possível afirmar que “Riscos que era calculáveis nas sociedades industriais tornaram-se imprevisíveis e insusceptíveis de avaliaçaõ nas sociedades de risco”. Na verdade, qualquer navio-tanque é susceptível de estar na génese de um processo poluidor. Nesta medida, ao menos em abstrato, sendo o risco de poluição previsível, já não o é a determinação da causa do evento marítimo, concretamente causador do derramamento dos hidrocarbonetos, fonte da poluição tal como da natureza dos danos que venha a causar, bem como da sua respetiva medida quantitativa. Ou seja, está igualmente em causa saber em que medida é possível, a partir de uma normativa internacional, ser antencipada a reparação jurídica dos prejuízos que, tecnicamente, não for, razoavelmente, possível de evitar. No campo do direito da responsabilidade civil, as mencionadas observações têm consequências cujo alcance não pode ser avaliado previamente. De forma, algo limitada, considerando o que está em jogo, citando Ulrich Beck, direi que “Comparado com a possibilidade de formular juízos de censurabilidade e de causalidade na modernidade clássica, o mundo da sociedade de risco não possui nem tais certezas nem tais garantias”.

O que fica para trás coloca, no campo direito, questões de difícil resposta por implicarem o imperativo de equacionar no plano normativo a probabilidade - se não mesmo a inevitabilidade - do que pode denominar-se dano catastrófico, fazer a sua aparição, como tal, no campo do direito da responsabilidade civil. Mas, igualmente justifica o interesse de examinar a susceptibilidade da sua função legitimadora da adaptação dessas mesmas regras à responsabilidade civil. A ser assim, sem perda ou esquecimento das linhas fundamentais integradoras do direito da responsabilidade civil, designadamente extra-contratual, conseguir-se-ia que essa muito particular situação de dano catastrófico, enquanto tal, e não apenas como uma mera forma de ilícito civil extra-contratual, fosse compreendida na categoria das atividades perigosas a que, no direito privado português, o artigo 493/2 do CC alude e, dessa maneira, ser tido em consideração, como tal, pelo pensamento jurídico.



1. A expressão “sociedade de risco” surgiu e desenvolveu-se no campo da literatura sociológica. Foi, aliás, no seu âmbito, que a mencionada expressão apareceu.

2. É o próprio Ulrich Beck que nota que a noção de risco está ligada à evolução registada nos tráfegos marítimos. Nota este respeito: «Etimologicamente, o conceito pode ser reencontrado no comércio marítimo intercontinental». A palavra “geral”, conceito central da estatística deriva de uma palavra árabe que significa perdas no mar e que entrou em várias línguas europeias no século XIII.

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