quarta-feira, 2 de maio de 2012


As andorinhas-dos-beirais e a sua relação inflamada com o Tribunal de Nisa

O ano de 2000 trouxe consigo, em matéria ambiental, uma decisão jurisprudencial como outrora nunca se havia registado nos tribunais portugueses. Reporto-me ao interessante caso das andorinhas de Nisa, em que, à curiosidade de a matéria factual relevante se ter verificado no edifício do Palácio de Justiça de Nisa, acresce uma interpretação de princípios e normas ambientais que em muito diferiu da habitual corrente jurisprudencial dos nossos tribunais.
Telegraficamente, o Acórdão que aqui aprecio e comento, foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça e deu provimento ao recurso de agravo interposto por uma organização não governamental de defesa do ambiente, que intentou contra o Estado de Portugal acção através da qual pretendia que fossem retirados das paredes do Palácio de Justiça de Nisa todos os objectos que artificialmente lá foram colocados com o intuito de impedir que as andorinhas voltassem a nidificar nesse local (isto depois de terem sido destruídos os cerca de 400 ninhos que lá existiam).
Fazendo um esforço de sintetização, os fundamentos da defesa de ambas as partes podem ser resumidos aos seguintes:
- por parte do Estado Português, foi alegado que os dejectos das andorinhas que ficavam acumulados nos beirais do Palácio de Justiça, bem como o pó dos ninhos, eram idóneos a provocar graves problemas de saúde a quem lá trabalhava (sobretudo respiratórios) e não permitia aos funcionários do tribunal abrir as janelas do edifício de forma a poder ventilá-lo quando necessário;
- a organização não governamental de defesa do ambiente, por seu turno, limitou-se a pedir a remoção daqueles instrumentos fixados nas paredes do Tribunal, de modo a permitir que as andorinhas continuassem a nidificar naquele local.
No sumário do Acórdão, o STJ qualificou o direito ao Ambiente como direito subjectivo fundamental (art.º 66º da Constituição da República Portuguesa) e comum (por contaposição àqueles direitos que apenas cabem a certas pessoas ou entidades por pertencerem a determinada categoria ou estatuto). Nesse mesmo sumário, foi ainda apontado pelo Tribunal um sentido positivo e um sentido negativo para este direito: naquele, exige-se ao Estado um dever de defesa do Ambiente e de controlo das actividades nocivas para este; em sentido negativo, o direito ao Ambiente materializa-se, nas palavras do Tribunal, num direito à abstenção por parte do Estado e de terceiros  à adopção de condutas prejudiciais para o Ambiente.
O professor Vasco Pereira da Silva entende ser a dimensão subjectiva do direito ao Ambiente que constitui a base para a construção de um sistema de Direito do Ambiente e que, essa dimensão, parece corresponder a uma preferência por parte do legislador consitituinte pela subjectivização da tutela jurídica das questões ambientais. Assim sendo, estou convicto de que  a decisão deste Tribunal foi a mais acertada e, parece-me, será também este o entendimento do referido Autor. E digo-o porque o Professor Vasco Pereira da Silva, para além de considerar que, como já referi, é na subjectivização do direito ao Ambiente que se deve basear a construção de um sistema de Direito de Ambiente, entende que todos os direitos fundamentais radicam num princípio permanente (dignidade da pessoa humana) que, aliado à sua história e à história de cada um dos outros direitos fundamentais, o leva a concluir que a sua concretização depende sempre dos distintos momentos e sociedades humanas. Ora, transpondo esta construção para o Direito do Ambiente, vemos que a evolução da sociedade e do Estado nos conduziu, sobretudo a partir das décadas de 60/70 do século XX, a encarar a “questão ambiental” como algo cuja necessidade de tutela deve obstar a quaisquer actos nocivos para o Ambiente e que deve estar sempre presente na actuação das entidades públicas e dos particulares, sem que isso tenha que significar uma perspectiva jusfundamentalista desse ramo do Direito. De resto,  um entendimento jusfundamentalista do Direito do Ambiente (do qual discordo) torna-se até desnecessário se o Estado, em primeiro lugar (por força das suas tarefas fundamentais, em especial, a referida no art.º 9º, d) CRP), e os particulares, depois, operarem uma correcta harmonização entre o progresso económico, científico, tecnológico, cultural, entre outros, e a defesa e promoção do Meio Ambiente, partindo de uma ideia de bem-estar geral e solidariedade intergeracional (no mesmo sentido aponta José Cunhal Sendim). Mas tal harmonização não pode, à luz da Constituição da República Portuguesa e dos grande princípios gerais de Direito do Ambiente, ter-se como meramente desejável, nem que seja pelos problemas de (in)constitucionalidade que isso acarreta: os professores Vital Moreira e Gomes Canotilho alertam  para a vinculação do Estado, em sede ambiental,  à concretização de determinadas prestações que, não ocorrendo, são susceptíveis de desencadear o mecanismo de controlo da constitucionalidade por omissão; o STJ, nesta decisão, qualifica de “paradoxal” a consagração, por parte do Estado Português, do direito ao ambiente e, com a sua actuação concreta, não apenas não o defender, mas também negá-lo (que, bem vistas as coisas, foi no que se materializou a conduta do Estado neste caso das andorinhas do Palácio de Justiça de Nisa).


Francisco Catarro, nº 18646
4º ano,  Subturma 9

Bibliografia consultada:


Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito- Lições de Direito do Ambiente, Almedina,  Lisboa,  2004;
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional- Tomo IV, Coimbra Editora, 2000;
José Cunhal Sendim, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos, Coimbra Editora, 1998;
Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,  Coimbra Editora, 2005.

O Acórdão pode ser consultado em:



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