domingo, 20 de maio de 2012

Artigo 280.º Poluição com perigo comum

Tutela penal ou tutela contra-ordenacional do ambiente?

Como argumentos a favor da criminalização de condutas lesivas do ambiente temos “a importância simbólica da existência de crimes ambientais”; a maior intensidade que a tutela penal confere à protecção ambiental; e a existência todo o rol de garantias do processo penal.
Os apologistas da tutela sancionatória por via administrativa afirmam que esta é meio mais célere e eficaz na protecção do infractor ambiental; permite-se a punição de pessoas singulares, assim como, de pessoas colectivas; e salvaguarda-se a autonomia do Direito penal, que não necessita de estar subalternizado às estatuições das autoridades administrativas.
Mas, como toda a moeda tem o seu reverso, também existem argumentos contra a cada uma das tutelas.
 A tutela penal é inconveniente pois o Direito Penal é repressivo de comportamentos anti-juridicos graves e o Direito do Ambiente reforça a sua actuação no princípio da prevenção; o direito penal não sanciona pessoas colectivas, e os danos ambientais são perpetrados, na sua maioria, por entes deste tipo (este argumento encontra-se desactualizado); há o perigo de descaracterização e de subalternização do direito penal; e este sistema será ineficaz , dada a dificuldade prática em “apanhar” e em “condenar” os “criminosos do ambiente”.
A sanção administrativa não é a melhor pois, as garantias de defesa dos particulares ficam diminuídas; há uma tendência para “banalizar” as actuações delituais ambientais, porque são sancionadas de forma pecuniária e estas sanções são transformadas num simples “custo” da actividade poluente.

No acórdão que se segue a tutela penal levou a melhor, e os infractores foram acusados de crime de poluição com perigo comum (artigo 280º do Código Penal )

Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE POLUIÇÃO
CRIME DE PERIGO
PROVA
PRESUNÇÕES  
Data do Acordão: 09-07-2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MIRA
 Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I. - No domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são relevantes os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
II. - «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)».
III. - A apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras de experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova.
IV. - O crime de poluição do citado artigo 280.º é um crime pluri-ofensivo em que o bens jurídicos tutelados pela norma incriminante não se confinam ao bem jurídico de feição colectiva como é o ambiente mas abrange igualmente bens jurídicos de natureza individual, como a vida, a integridade física e bens alheios de valor elevado.

Neste acórdão há um casal a recorrer da condenação por um crime de poluição com perigo comum, p. p. nos termos do disposto no artigo 280º, al. a) do Código Penal, crime esse que terá sido cometido por via da implantação de uma fossa séptica que poluiu a água de um poço dum vizinho que serviria para consumo doméstico. Alegando de que se trata de um perigo de poluição com perigo concreto e não de poluição com perigo comum, como foram condenados.
O Tribunal da Relação de Coimbra deu como improcedente o recurso, fundamentando assim:

“8. Da verificação do crime de poluição do artigo 280.º, al. a) do Código Penal:
Dispõe o artigo 280.º, alínea a) do Código Penal (norma introduzida no referido diploma pela revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março):
«Quem mediante uma conduta descrita no n.º 1 do artigo anterior, criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão:
a) De 1 a 8 anos, se a conduta e a criação de perigo forem dolosas;
b) Até 5 anos, se a conduta e a criação do perigo ocorrer por negligência».
Por sua vez, estatui o artigo 279.º do mesmo corpo normativo:
«1. Quem, em medida inadmissível:
a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades;
(…) é punido (…).
3. A poluição ocorre em medida inadmissível sempre que a natureza ou os valores da emissão ou da imissão poluentes contrariem prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente em conformidade com disposições legais ou regulamentares e sob cominação de aplicação das penas previstas neste artigo».
O crime de poluição do citado artigo 280.º é um crime pluri-ofensivo em que o bem jurídico protegido não visa proteger o ambiente, pelo menos de forma directa. Nas palavras do Sr. Conselheiro José Souto Moura Crimes Ambientais, CEJ, pág. 14., não se trata de um crime ecológico puro, em que o legislador se desinteressa da tutela de bens jurídicos individuais. O que a norma visa proteger é a vida, a integridade física e bens alheios de valor elevado.
«E isto porque, quando no artigo 280.º se remetia para a conduta descrita no n.º 1 do artigo 279.º, como que ficava de fora a definição da medida inadmissível da poluição, que constava do n.º 3 do artigo 279.º» Souto Moura, idem.. O legislador, se o quisesse, teria sido mais explícito, fazendo menção expressa, também, ao dito n.º 3».
Este entendimento não sofre hoje contestação em face da nova redacção conferida ao artigo 280.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, do seguinte teor:
«Quem mediante conduta descrita nas alíneas do n.º 1 do artigo anterior, criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, para bens patrimoniais alheios de valor elevado ou para monumentos culturais ou históricos, é punido com pena de prisão:
a) De 1 a 8 anos, se a conduta e a criação de perigo forem dolosas;
b) Até 5 anos, se a conduta e a criação do perigo ocorrer por negligência» (os segmentos anotados a “negrito” pertencem-nos, e correspondem às alterações concretamente registadas).
Na verdade, na nova redacção do preceito, o legislador foi preciso na referência às alíneas do artigo 279.º, sinal inequívoco de que foi sua intenção «utilizar a poluição como mero instrumento de criação de perigo, não se fazendo dele um tipo qualificado em que, ao tipo matricial, se acrescentou depois o perigo» Souto Moura, ibidem..
Para os recorrentes, o crime em destaque é um crime de perigo comum «em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indeterminado de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos».
Partindo desta concepção para a análise do caso concreto, acrescentam os recorrentes que a circunscrição do perigo decorrente da conduta promovida pelos arguidos ao assistente, e à sua família (cfr. pontos 2 e 5 da factualidade provada), obsta ao enquadramento da ocorrência versada nos autos como perigo comum, conduzindo necessariamente à sua absolvição, por os factos provados não preencherem o “tipo” de crime pelo qual foram acusados e condenados.
Não é esta a posição que defendemos.
A propósito dos crimes de perigo, pode ler-se no ponto 31. do preâmbulo do Dec. Lei 400/82 de 23/9, que aprovou o C. Penal na redacção de 1982:
«O ponto crucial destes crimes - (...) - reside no facto de que condutas cujo desvaler da acção é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».
Os crimes de perigo têm por oposto os crimes de dano. Enquanto nestes, o preenchimento típico depende da efectiva lesão do bem jurídico tutelado pela norma, naqueles a consumação basta-se com o perigo, com o risco, efectivo ou presumido, da lesão do bem jurídico tutelado pela norma Neste sentido, Prof. Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, I, pág. 37, e Rui Carlos Pereira, in O Dolo de Perigo, pág. 23.. Podemos pois, afirmar que o perigo é sempre a possibilidade ou a probabilidade de lesão do bem jurídico tutelado.
Nos crimes de perigo há que distinguir entre crime de perigo abstracto e crime de perigo concreto.
Nos primeiros, o perigo, a perigosidade da acção, é presumido júris et de jure.
Nos segundos, o perigo, concebido como situação perigosa, surge como “evento” típico, destacado da acção.
Dito isto, o crime do art. 280.º incrimina uma conduta e associa a esta, na descrição típica, como um evento autónomo, um perigo para os bens jurídicos que descreve (vida ou integridade física de outrem, bens patrimoniais alheios de valor elevado ou, na nova redacção do preceito, para monumentos culturais ou históricos), sendo, por isto, um crime de perigo concreto.
«Os crimes de perigo comum são crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indeterminado e indiferenciável de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou por vários bens jurídicos Prof. José Faria e Costa, citando Tröndle/Fisher, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 866.. Se uma acção – desse modo tipificada na lei – cria um perigo concreto, por exemplo, para a vida de dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas, está-se, indesmentivelmente, perante um crime que é, simultaneamente, um crime de perigo comum e de perigo concreto» Prof. Faria e Costa, idem, pág. 866..
Se a epígrafe do art. 280.º pode levar a pensar que nos situamos perante um crime de perigo comum, a letra da norma não deixa dúvidas de que se trata «de um clássico crime de perigo concreto» segundo o modelo acima descrito. «Bem mais perto “de uma compreensão de “perigo comum” (…) está, é bom dizê-lo, a norma incriminadora contida no art. 281» Prof. Faria Costa, mesma obra, pág. 866/867."


Fica assim assente que o crime do artigo 280.º é um crime de perigo concreto e não um crime de perigo comum, ao preenchimento dos elementos do tipo basta a mera colocação em perigo dos bens jurídicos aí mencionados, independentemente da ocorrência de uma situação de perigo para um número indiferenciado e indeterminado de objectos de acção sustentados por bens jurídicos .

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