O regime jurídico da
avaliação de impacte ambiental ou RJAIA (consagrado no Decreto-Lei
n.º 69/2000, de 3 de Maio) determina a nulidade de actos praticados
com desrespeito pelo disposto no artigo 20.º/1 e 2. Isso é
estatuído pelo n.º 3 do mesmo artigo.
Se o projecto a licenciar
ou autorizar recair no âmbito de aplicação do regime de AIA (art.
1.º/1 a 3 RJAIA), a entidade licenciadora ou competente para
autorizar o projecto em causa (artigo 5.º a) e 6.º RJAIA) terá de
subordinar a sua decisão final ao que for determinado pela
declaração de impacte ambiental, que tem carácter de acto prévio
(artigos 1.º/2 e 20.º AIA). Essa mesma declaração (ou DIA, que é
a decisão emitida no âmbito da AIA sobre a viabilidade da execução
dos projectos sujeitos ao regime previsto no RJAIA) pode ter um
conteúdo favorável, condicionalmente favorável ou desfavorável,
nos termos do artigo 17.º. Será favorável se for considerado que
do ponto de vista do regime da AIA, nada obsta ao licenciamento; será
condicionalmente favorável, se a Autoridade de AIA se decidir pela
necessidade de sujeitar o acto autorizativo a emitir no procedimento
de licenciamento ou de autorização a determinadas medidas de
minimização do impacto ambiental do projecto. Será desfavorável,
quando a Autoridade de AIA considerar que do ponto de vista
ambiental, o projecto não poderá ser aprovado, dado que os
prejuízos ecológicos que adviriam da sua execução são
incomparavelmente superiores aos outros eventuais benefícios que
pudesse originar.
Concentremo-nos nos
efeitos da declaração de impacte ambiental condicionalmente
favorável ou desfavorável sobre os requisitos de validade do acto
autorizativo a emitir pela entidade licenciadora ou competente para a
autorização. Nos termos do artigo 20.º/ 1 e 3, se esse último
acto desrespeitar as condições fixadas na DIA – em caso de
declaração condicionalmente favorável – ou se for emitido em
contrariedade a uma DIA desfavorável – caso em que, como explica
Vasco Pereira da Silva, só é aceitável um acto autorizativo de
conteúdo negativo – será inquinado por nulidade.
Tratando-se de um acto
nulo, há que sujeitá-lo ao regime geral da nulidade de actos
administrativos previsto no Código do Procedimento Administrativo
(CPA). Traços gerais desse regime são, entre outros, a
insusceptibilidade de revogação (artigo 139.º/1 a) CPA), a
impossibilidade de o acto ser objecto de ratificação, reforma ou
conversão (artigo 137.º/1 CPA), a possibilidade de desaplicação
por qualquer sujeito da ordem jurídica (artigo 134.º/2 CPA, na
interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa –
CRP – proposta por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de
Matos) e a admissibilidade de declaração de nulidade, portanto,
eliminação da ordem jurídica, a todo o tempo e independentemente
de prazo (artigo 134.º/2 CPA)). Por fim, o acto administrativo nulo
carece de qualquer produtividade jurídica (artigo 134.º/1 CPA).
Mas este último aspecto
do regime da nulidade não obsta a que, nos termos do artigo 134.º/3
CPA, lhe possam ser reconhecidos efeitos putativos. Reza o
preceito: “o disposto nos números anteriores [incluindo a
regra sem excepção da improdutividade jurídica] não prejudica
a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações
de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do
tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito”. A
norma, que deve ser considerada especial e não excepcional face à
regra da improdutividade jurídica, como explica Paulo Otero, permite
antes a emissão de decisões administrativas ou jurisdicionais que
consubstanciem uma juridificação de efeitos fácticos. Não
se trata aqui de uma “convalidação” ou estabilização na ordem
jurídica do acto nulo – cuja nulidade poderá ainda ser declarada
a todo o tempo – mas de um reconhecimento de efeitos jurídicos em
casos especiais em que princípios fundamentais da actividade
administrativa o imponham. Salientam Vieira de Andrade e Mário
Esteves de Oliveira que aqui assumem particular importância os
princípios da proporcionalidade e da tutela da confiança. Com
efeito, em muitas situações, o particular poderá ter confiado na
actuação da Administração – no caso do artigo 20.º/3 RJAIA, na
decisão da Autoridade competente para a emissão do acto
autorizativo – e ter regido a sua vida em conformidade com o acto
de que é beneficiário. E num Estado de Direito democrático, como
afirma Vieira de Andrade, os cidadãos têm o direito a confiar nas
decisões de órgãos públicos e a presumi-las válidas. Os efeitos
prototípicos do acto administrativo, o legalizador no caso de actos
autorizativos que constituem novos direitos (licenças) ou põem fim
a uma proibição relativa (autorizações), nunca se chegam a
produzir, pelo que as consequências da actuação do particular que
baseou no acto a sua conduta deverão ser eliminados do mundo dos
factos. Ora, a reposição da legalidade pode resultar num prejuízo
enorme na esfera jurídica do particular, em especial quando este
tenha confiado legitimamente na legalidade do acto. Será muitas
vezes desproporcional a integral destruição dos efeitos fácticos
que resultaram da actuação do administrado. Por isso, o 134.º/3
CPA permite o seu reconhecimento. Permite a juridificação de
situações de facto ou reconhecimento de efeitos putativos.
Cumpre analisar
brevemente, contudo, se essa juridificação é admissível no caso
de projectos que tenham nascido à sombra de actos de licenciamento
ou de autorização nulos por determinação do artigo 20.º/3 RJAIA.
É que o 134.º/3 CPA exige sempre uma concreta ponderação de
interesses e de princípios. Será aceitável que um projecto que a
Autoridade de AIA tenha entendido como excessivamente lesivo para o
meio ambiente possa vir a consolidar-se no mundo dos factos para
sempre, mediante o reconhecimento da sua legalidade putativa?
A resposta parece ser
negativa.
Com efeito, há que
atentar em dois dos pressupostos da atribuição de efeitos putativos
ao acto nulo: o decurso de determinado lapso temporal e a sua
conformidade a princípios gerais de Direito.
Por um lado, há que ter
por assente o seguinte: os efeitos negativos para o ambiente que
determinados projectos poderão criar muitas vezes hão-de se agravar
pelo decurso do tempo. Imagine-se por exemplo uma instalação de
pecuária intensiva (anexo II, 1 c) RJAIA) ou uma instalação
química para a produção de substâncias à escala industrial
(anexo I, 6, RJAIA) que utilizem químicos e efectuem descargas de
resíduos ou emitam gases que em muito prejudiquem o meio ambiente.
Quanto maior o lapso temporal em que a actividade respectiva seja
exercida, maiores as consequências nefastas para bens
jurídico-ambientais. Assim, mesmo numa lógica de protecção do
particular que tenha confiado no acto autorizativo em que o artigo
134.º/3 CPA assenta, parece-me que na grande maioria dos casos, bem
ponderados os interesses ecológicos públicos e os interesses
económicos privados em jogo – como de resto, já haviam sido
ponderados no próprio procedimento de AIA – não será admissível
invocar o decurso do tempo para defender a estabilização no mundo
dos factos das instalações que poluam o meio ambiente. A nulidade
especialmente fixada na lei (artigo 133.º/1 CPA) prevista no artigo
20.º/3 RJAIA teria a sua razão de ser completamente frustrada.
Por outro lado, atentando
agora no aspecto dos princípios gerais de Direito que no caso
concreto possam ser convocados, há que lembrar o seguinte:
Primeiro, muitos dos
actos autorizativos a emitir pela Entidade licenciadora ou competente
para a autorização terão como destinatários empresas ou
industriais. Nesses casos, a execução de projectos como aquele que
se pretende ver aprovado em AIA constituirá a sua actividade
económica habitual. Nessas circunstâncias, será de exigir um maior
grau de diligência ao particular: se não sabia que a decisão
autorizativa contrária à DIA é ilegal, deveria saber. As suas
expectativas na manutenção da situação de facto criada deixam
assim de poder ser consideradas legítimas, pelo que o princípio da
tutela da confiança, subprincípio da boa fé (artigo 266.º/2 CRP e
6.º-A/2 a) CPA), não encontrará aplicação.
Segundo, não se pode
deixar de considerar os princípios da prevenção e do
desenvolvimento sustentável, com estatuto constitucional – artigo
66.º/1 e 2 CRP. Também estes devem ser vistos, na ordem jurídica
portuguesa, como princípios gerais de Direito, aplicáveis a toda a
actuação administrativa e que se devem ter por acrescidos aos
princípios contidos no artigo 266.º CRP. O princípio da prevenção,
como explica Vasco Pereira da Silva, tem como finalidade evitar
lesões no meio-ambiente, o que implica capacidade de antecipação
de situações potencialmente perigosas, de origem natural ou humana,
capazes de pôr em risco os componentes ambientais, de modo a
permitir a adopção dos meios mais adequados para afastar a sua
verificação ou, pelo menos, minorar as suas consequências. Por
outro lado, o princípio do desenvolvimento sustentável estabelece
uma exigência de ponderação das consequências para o meio
ambiente de qualquer decisão jurídica de natureza económica
tomadaa pelos poderes públicos e estabelece a sua invalidade, no
caso dos custos ambientais serem incomparavelmente superiores aos
respectivos benefícios económicos. Também estes princípios
parecem ser relevantes para efeitos da ponderação casuística
exigida pelo artigo 134.º/3 CPA, quando “tempera o regime da
nulidade” (Vieira de Andrade), pelo que a atribuição de
efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes do acto
autorizativo nulo ficará vedada. É muito difícil encontrar
situações em que, tendo em conta o princípio da prossecução do
interesse público, como é público o interesse da protecção do
ambiente, esse mesmo princípio possa ceder face a interesses do
particular cuja actividade seja de tal modo lesiva para o ambiente
que o projecto objecto de AIA obteve como resposta uma DIA
condicionalmente favorável ou mesmo desfavorável. Esse mesmo
particular não terá, como já foi dito, uma expectativa digna de
tutela, que se possa reputar legítima. E também como já foi dito,
a durabilidade dos efeitos nocivos para o meio ambiente do projecto
em execução apenas os agravará.
Por estes motivos, não
creio que seja aplicável o artigo 134.º/3 CPA possa ser aplicado a
situações de facto geradas à sombra de actos de licenciamento ou
de autorização nulos por força do artigo 20.º/3 RJAIA.
Bibliografia consultada:
José Carlos Vieira de
Andrade, A nulidade administrativa, essa desconhecida, in RLJ, ano
138.º, Julho-Agosto 2009
Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, I, 3.ª edição, D. Quixote, Lisboa, 2008
Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, I, 3.ª edição, D. Quixote, Lisboa, 2008
Marcelo Rebelo de
Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, III, 2.ª
edição, D. Quixote, Lisboa, 2009
Mário Esteves de
Oliveira/Pedro Costa Gonçalves/João Pacheco de Amorim, Código do
Procedimento Administrativo comentado, 2.ª edição, Almedina,
Coimbra, 1997
Paulo Otero, Legalidade e
Administração Pública – o sentido da vinculação administrativa
à juridicidade, Almedina, Coimbra, 2003
Vasco Pereira da Silva,
Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina,
Coimbra, 2002
Filipe Brito Bastos, subturma 9
Filipe Brito Bastos, subturma 9
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