domingo, 20 de maio de 2012

Breves notas sobre a insusceptibilidade de eficácia putativa de actos autorizativos contrários a declaração de impacte ambiental




O regime jurídico da avaliação de impacte ambiental ou RJAIA (consagrado no Decreto-Lei n.º 69/2000, de 3 de Maio) determina a nulidade de actos praticados com desrespeito pelo disposto no artigo 20.º/1 e 2. Isso é estatuído pelo n.º 3 do mesmo artigo.
Se o projecto a licenciar ou autorizar recair no âmbito de aplicação do regime de AIA (art. 1.º/1 a 3 RJAIA), a entidade licenciadora ou competente para autorizar o projecto em causa (artigo 5.º a) e 6.º RJAIA) terá de subordinar a sua decisão final ao que for determinado pela declaração de impacte ambiental, que tem carácter de acto prévio (artigos 1.º/2 e 20.º AIA). Essa mesma declaração (ou DIA, que é a decisão emitida no âmbito da AIA sobre a viabilidade da execução dos projectos sujeitos ao regime previsto no RJAIA) pode ter um conteúdo favorável, condicionalmente favorável ou desfavorável, nos termos do artigo 17.º. Será favorável se for considerado que do ponto de vista do regime da AIA, nada obsta ao licenciamento; será condicionalmente favorável, se a Autoridade de AIA se decidir pela necessidade de sujeitar o acto autorizativo a emitir no procedimento de licenciamento ou de autorização a determinadas medidas de minimização do impacto ambiental do projecto. Será desfavorável, quando a Autoridade de AIA considerar que do ponto de vista ambiental, o projecto não poderá ser aprovado, dado que os prejuízos ecológicos que adviriam da sua execução são incomparavelmente superiores aos outros eventuais benefícios que pudesse originar.
Concentremo-nos nos efeitos da declaração de impacte ambiental condicionalmente favorável ou desfavorável sobre os requisitos de validade do acto autorizativo a emitir pela entidade licenciadora ou competente para a autorização. Nos termos do artigo 20.º/ 1 e 3, se esse último acto desrespeitar as condições fixadas na DIA – em caso de declaração condicionalmente favorável – ou se for emitido em contrariedade a uma DIA desfavorável – caso em que, como explica Vasco Pereira da Silva, só é aceitável um acto autorizativo de conteúdo negativo – será inquinado por nulidade.
Tratando-se de um acto nulo, há que sujeitá-lo ao regime geral da nulidade de actos administrativos previsto no Código do Procedimento Administrativo (CPA). Traços gerais desse regime são, entre outros, a insusceptibilidade de revogação (artigo 139.º/1 a) CPA), a impossibilidade de o acto ser objecto de ratificação, reforma ou conversão (artigo 137.º/1 CPA), a possibilidade de desaplicação por qualquer sujeito da ordem jurídica (artigo 134.º/2 CPA, na interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa – CRP – proposta por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos) e a admissibilidade de declaração de nulidade, portanto, eliminação da ordem jurídica, a todo o tempo e independentemente de prazo (artigo 134.º/2 CPA)). Por fim, o acto administrativo nulo carece de qualquer produtividade jurídica (artigo 134.º/1 CPA).
Mas este último aspecto do regime da nulidade não obsta a que, nos termos do artigo 134.º/3 CPA, lhe possam ser reconhecidos efeitos putativos. Reza o preceito: “o disposto nos números anteriores [incluindo a regra sem excepção da improdutividade jurídica] não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito”. A norma, que deve ser considerada especial e não excepcional face à regra da improdutividade jurídica, como explica Paulo Otero, permite antes a emissão de decisões administrativas ou jurisdicionais que consubstanciem uma juridificação de efeitos fácticos. Não se trata aqui de uma “convalidação” ou estabilização na ordem jurídica do acto nulo – cuja nulidade poderá ainda ser declarada a todo o tempo – mas de um reconhecimento de efeitos jurídicos em casos especiais em que princípios fundamentais da actividade administrativa o imponham. Salientam Vieira de Andrade e Mário Esteves de Oliveira que aqui assumem particular importância os princípios da proporcionalidade e da tutela da confiança. Com efeito, em muitas situações, o particular poderá ter confiado na actuação da Administração – no caso do artigo 20.º/3 RJAIA, na decisão da Autoridade competente para a emissão do acto autorizativo – e ter regido a sua vida em conformidade com o acto de que é beneficiário. E num Estado de Direito democrático, como afirma Vieira de Andrade, os cidadãos têm o direito a confiar nas decisões de órgãos públicos e a presumi-las válidas. Os efeitos prototípicos do acto administrativo, o legalizador no caso de actos autorizativos que constituem novos direitos (licenças) ou põem fim a uma proibição relativa (autorizações), nunca se chegam a produzir, pelo que as consequências da actuação do particular que baseou no acto a sua conduta deverão ser eliminados do mundo dos factos. Ora, a reposição da legalidade pode resultar num prejuízo enorme na esfera jurídica do particular, em especial quando este tenha confiado legitimamente na legalidade do acto. Será muitas vezes desproporcional a integral destruição dos efeitos fácticos que resultaram da actuação do administrado. Por isso, o 134.º/3 CPA permite o seu reconhecimento. Permite a juridificação de situações de facto ou reconhecimento de efeitos putativos.
Cumpre analisar brevemente, contudo, se essa juridificação é admissível no caso de projectos que tenham nascido à sombra de actos de licenciamento ou de autorização nulos por determinação do artigo 20.º/3 RJAIA. É que o 134.º/3 CPA exige sempre uma concreta ponderação de interesses e de princípios. Será aceitável que um projecto que a Autoridade de AIA tenha entendido como excessivamente lesivo para o meio ambiente possa vir a consolidar-se no mundo dos factos para sempre, mediante o reconhecimento da sua legalidade putativa?
A resposta parece ser negativa.
Com efeito, há que atentar em dois dos pressupostos da atribuição de efeitos putativos ao acto nulo: o decurso de determinado lapso temporal e a sua conformidade a princípios gerais de Direito.
Por um lado, há que ter por assente o seguinte: os efeitos negativos para o ambiente que determinados projectos poderão criar muitas vezes hão-de se agravar pelo decurso do tempo. Imagine-se por exemplo uma instalação de pecuária intensiva (anexo II, 1 c) RJAIA) ou uma instalação química para a produção de substâncias à escala industrial (anexo I, 6, RJAIA) que utilizem químicos e efectuem descargas de resíduos ou emitam gases que em muito prejudiquem o meio ambiente. Quanto maior o lapso temporal em que a actividade respectiva seja exercida, maiores as consequências nefastas para bens jurídico-ambientais. Assim, mesmo numa lógica de protecção do particular que tenha confiado no acto autorizativo em que o artigo 134.º/3 CPA assenta, parece-me que na grande maioria dos casos, bem ponderados os interesses ecológicos públicos e os interesses económicos privados em jogo – como de resto, já haviam sido ponderados no próprio procedimento de AIA – não será admissível invocar o decurso do tempo para defender a estabilização no mundo dos factos das instalações que poluam o meio ambiente. A nulidade especialmente fixada na lei (artigo 133.º/1 CPA) prevista no artigo 20.º/3 RJAIA teria a sua razão de ser completamente frustrada.
Por outro lado, atentando agora no aspecto dos princípios gerais de Direito que no caso concreto possam ser convocados, há que lembrar o seguinte:
Primeiro, muitos dos actos autorizativos a emitir pela Entidade licenciadora ou competente para a autorização terão como destinatários empresas ou industriais. Nesses casos, a execução de projectos como aquele que se pretende ver aprovado em AIA constituirá a sua actividade económica habitual. Nessas circunstâncias, será de exigir um maior grau de diligência ao particular: se não sabia que a decisão autorizativa contrária à DIA é ilegal, deveria saber. As suas expectativas na manutenção da situação de facto criada deixam assim de poder ser consideradas legítimas, pelo que o princípio da tutela da confiança, subprincípio da boa fé (artigo 266.º/2 CRP e 6.º-A/2 a) CPA), não encontrará aplicação.
Segundo, não se pode deixar de considerar os princípios da prevenção e do desenvolvimento sustentável, com estatuto constitucional – artigo 66.º/1 e 2 CRP. Também estes devem ser vistos, na ordem jurídica portuguesa, como princípios gerais de Direito, aplicáveis a toda a actuação administrativa e que se devem ter por acrescidos aos princípios contidos no artigo 266.º CRP. O princípio da prevenção, como explica Vasco Pereira da Silva, tem como finalidade evitar lesões no meio-ambiente, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas, de origem natural ou humana, capazes de pôr em risco os componentes ambientais, de modo a permitir a adopção dos meios mais adequados para afastar a sua verificação ou, pelo menos, minorar as suas consequências. Por outro lado, o princípio do desenvolvimento sustentável estabelece uma exigência de ponderação das consequências para o meio ambiente de qualquer decisão jurídica de natureza económica tomadaa pelos poderes públicos e estabelece a sua invalidade, no caso dos custos ambientais serem incomparavelmente superiores aos respectivos benefícios económicos. Também estes princípios parecem ser relevantes para efeitos da ponderação casuística exigida pelo artigo 134.º/3 CPA, quando “tempera o regime da nulidade” (Vieira de Andrade), pelo que a atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes do acto autorizativo nulo ficará vedada. É muito difícil encontrar situações em que, tendo em conta o princípio da prossecução do interesse público, como é público o interesse da protecção do ambiente, esse mesmo princípio possa ceder face a interesses do particular cuja actividade seja de tal modo lesiva para o ambiente que o projecto objecto de AIA obteve como resposta uma DIA condicionalmente favorável ou mesmo desfavorável. Esse mesmo particular não terá, como já foi dito, uma expectativa digna de tutela, que se possa reputar legítima. E também como já foi dito, a durabilidade dos efeitos nocivos para o meio ambiente do projecto em execução apenas os agravará.
Por estes motivos, não creio que seja aplicável o artigo 134.º/3 CPA possa ser aplicado a situações de facto geradas à sombra de actos de licenciamento ou de autorização nulos por força do artigo 20.º/3 RJAIA.

Bibliografia consultada:

José Carlos Vieira de Andrade, A nulidade administrativa, essa desconhecida, in RLJ, ano 138.º, Julho-Agosto 2009
Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, I, 3.ª edição, D. Quixote, Lisboa, 2008
Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, III, 2.ª edição, D. Quixote, Lisboa, 2009
Mário Esteves de Oliveira/Pedro Costa Gonçalves/João Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo comentado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 1997
Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública – o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, Almedina, Coimbra, 2003
Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina, Coimbra, 2002



Filipe Brito Bastos, subturma 9

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