sexta-feira, 18 de maio de 2012

Deferimentos tácitos e princípio da prevenção: Em busca de uma leitura conforme à CRP e ao Direito da UE


1. Em que consiste o princípio da prevenção
A concretização do princípio da prevenção tem vindo a colocar dificuldades, principalmente devido à dicotomia entre princípio da prevenção ≠ princípio da precaução que a doutrina tem vindo a discutir.
Segundo a definição proposta por Vasco Pereira da Silva[1], “o princípio da prevenção tem como finalidade evitar lesões do meio ambiente, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas, de origem natural ou humana, capazes de pôr em risco os componentes ambientais, de modo a permitir a adopção dos meios mais adequados para afastar a sua verificação ou, pelo menos, minorar as suas consequências”. Este autor vem, assim, negar a sua adesão às teses em que o princípio da prevenção é distinto do da precaução.
Segundo alguns autores, a distinção entre precaução e prevenção alicerçar-se-á no facto de as lesões terem origem natural ou humana, de serem lesões actuais ou futuras. Para Vasco Pereira da Silva esta distinção revela-se inútil: por um lado, vai colocar entraves ao entendimento da lei, uma vez que as duas expressões – prevenção e precaução – surgem sinónimas, o que colocará problemas quanto ao preenchimento dos conceitos e à prova do respeito pelos princípios.
Outro argumento interessante na divergência entre prevenção e precaução, é a ideia defendida por alguns autores, nomeadamente Ana Gouveia Martins[2], de que a distinção se alicerça na ideia de que “não é necessário comprovar cientificamente que uma actividade causa danos, revelando-se suficiente a existência de um risco e a verosimilhança de uma relação causal”. Parece daqui resultar que o princípio da precaução consistiria num princípio de in dubio pro natura”. Outros autores[3] também costumam basear-se no Tratado de Maastricht, mais concretamente na alteração do artigo 174º/2 (“Basear-se-á nos princípios da precaução e da acção preventiva”). Com esta alteração, entendem que o legislador comunitário visou a autonomização do princípio da precaução face ao da prevenção. Ora, salvo melhor opinião, da letra do artigo não parecem resultar motivos para que não seja possível a sua interpretação no sentido de que “princípios da precaução e da acção preventiva” possam ser entendidos como um princípio uno.
Na senda de Vasco Pereira da Silva, não parece que tais argumentos devam proceder. A autonomização do princípio da precaução face ao da prevenção só fará sentido se o princípio de in dubio pro natura consistir numa verdadeira presunção, o que implicará que até a construção da mais miserável casinha seja um dano ambiental. Apenas o retorno às cavernas produziria zero danos ambientais. Tal não é equacionável.
Sendo assim, propendemos, tal como Vasco Pereira da Silva, para um entendimento lato do princípio da prevenção, abarcando o chamado princípio da precaução (se não for de todo possível eliminar o recurso à expressão).

2. O princípio da prevenção na CRP: âmbito e limitações
O princípio da prevenção ganha carácter constitucional por força do artigo 66º/2 da Constituição da República Portuguesa:
Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e participação dos cidadãos:
a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;
b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem;
c) Criar e desenvolver reservas e parque naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações;
e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas;
f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;
h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.
A Constituição Portuguesa de 1976 tem sido apelidada de “Constituição Verde” ou “Constituição do Ambiente”. Na senda dos primeiros movimentos ecológicos, nos anos 60 e 70, a Constituição de 1976 não se deixou ficar para trás e consagrou o direito ao ambiente como um direito fundamental (artigo 66º/1 CRP), a par da sua consagração como tarefa do Estado (artigo 9º CRP).
Como princípios ambientais constitucionais temos, além do princípio da prevenção, os princípios do desenvolvimento sustentável (artigo 66º/2 CRP), do aproveitamento racional dos recursos naturais (artigo 66º/2/d) CRP) e do poluidor-pagador (artigo 66º/2/h) CRP), mas estes não nos interessa particularmente ficando de fora do âmbito deste labor.
Compreendendo o princípio da prevenção nos termos supra referidos, aos olhos do artigo 66º/2 CRP este será entendido de um modo lato, abrangendo o chamado princípio da precaução. O princípio impõe que sempre que existam possíveis lesões ao meio ambiente se recorra às melhores tecnologias disponíveis à data, visando sempre a diminuição de riscos para o ambiente.
Deste modo, sempre que este princípio não seja respeitado, estaremos perante uma inconstitucionalidade.

3. O deferimento tácito
O acto tácito é a omissão indevida de um acto administrativo cuja emissão foi solicitada, à qual a lei associa alguns dos efeitos que resultariam da prática do acto administrativo omitido. Da omissão pode resultar um acto jurídico positivo: o deferimento tácito (por oposição ao acto jurídico negativo: o indeferimento tácito).
O deferimento tácito e o indeferimento tácito encontram-se previstos nos artigos 108º[4] e 109º[5] do Código de Procedimento Administrativo.
Ora, no âmbito do Direito Ambiental, nos regimes de Avaliação de Impacto Ambiental de Projectos, PIN, PIN+, Avaliação de Impacto Ambiental Estratégica, o recurso ao deferimento tácito é patente.
Por motivos de prazo (a janela de oportunidades está a fechar-se perigosamente), vamos centrar-nos essencialmente no deferimento tácito em sede de Avaliação de Impacto Ambiental de Projectos (DL 69/2000).
A situação de deferimento tácito flagrante dentro do regime de AIA está presente do artigo 19º/1 DL 69/2000:
Considera-se que a DIA é favorável se nada for comunicado à entidade licenciadora ou competente para a autorização no prazo de 140 dias, no caso de projectos constantes do Anexo II, contados a partir da data da recepção da documentação prevista no nº 1 do artigo 13º.
Sendo assim, haverá casos em que ninguém toma uma decisão consciente a respeito dos danos que o projecto em causa pode vir a causar ao ambiente.
Ora, tal parece completamente incompatível com o princípio da prevenção, constitucionalmente consagrado, que dita que deve haver uma vigilância apertada sobre os projectos que possam prejudicar o meio ambiente.

4. Problema de inconstitucionalidade?
Considerando tudo o que até agora foi exposto, não podemos concluir outra coisa senão a inconstitucionalidade do artigo 19º DL 69/2000, por violação do princípio da prevenção, consagrado no artigo 66º/2 CRP.
Parece incongruente, perante a obrigação de fazer o possível e o impossível para garantir o mínimo dano ambiental, que depois se venha possibilitar a dispensa do único modo de assegurar que essa obrigação é cumprida.
Posto isto, nada mais no resta além de propender para a inconstitucionalidade do artigo 19º DL 69/2000.

5. Solução de Vasco Pereira da Silva
Perante a constatação da inconstitucionalidade do deferimento tácito do acto de dispensa de AIA, por violação do princípio da prevenção (artigo 66º/2 CRP), Vasco Pereira da Silva vem propor uma interpretação do artigo 19º DL 69/2000 conforme à constituição.
A solução apontada pelo Professor passa pelo artigo 19º/5, que dita que a entidade competente para o licenciamento deve ter em conta o estudo de impacto ambiental apresentado. Existiria, assim, um dever de ponderação por parte da entidade licenciadora. Tomemos por exemplo um caso prático: uma empresa de energias renováveis pretende construir um parque eólico em determinada localidade. Para o efeito do DL 69/2000 apresenta um requerimento de AIA. O Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território não profere a respectiva DIA no prazo exigido, havendo lugar a deferimento tácito da mesma (artigo 19º/1 DL 69/2000). Segundo a interpretação de Vasco Pereira da Silva, a entidade licenciadora, no caso a Câmara Municipal, poderia recusar-se ao licenciamento, tendo por base o Estudo de Impacto Ambiental (artigos 12º e ss. DL 69/2000) que, segundo esta interpretação, seria obrigatoriamente tido em consideração.
Deste modo, renasceria a obrigação de na decisão final ponderar tudo aquilo que ainda não tinha sido levado em conta por via do deferimento tácito.
“O deferimento tácito do acto de avaliação não significa a aprovação do pedido de licenciamento do projecto. Não tendo havido acto de avaliação isso significa que não foi ainda avaliada nem ponderada a dimensão ambiental da actividade proposta, pelo que tal juízo deve agora ser obrigatoriamente realizado, tanto através da licença ambiental, quando ela ainda tenha lugar, como pela «entidade competente para o licenciamento ou autorização do projecto que deve ter em consideração o EIA apresentado pelo proponente»”
Esta solução parece, contudo, incompatível com a letra do artigo 20º DL 69/2000, que parece apontar para a realização do acto de licenciamento do projecto:
O acto de licenciamento ou de autorização de projectos sujeitos a procedimento de AIA só pode ser praticado após a notificação da respectiva DIA favorável ou condicionalmente favorável ou após o decurso do prazo necessário para a produção de deferimento tácito nos termos previstos no nº1 do artigo anterior [artigo 19º] .
É certo que da letra da lei também não resulta a obrigatoriedade do acto de licenciamento, mas quer-nos parecer que aos olhos do particular interessado no licenciamento a não aplicação do artigo 20º em sentido favorável ao projecto terá contornos de ilegalidade.

6. Directiva da UE: alcance
O DL 69/2000 veio transpor para o ordenamento jurídico português a Directiva 97/11/CE, do Conselho, de 3 de Março de 1997, que altera a Directiva 85/337/CEE relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente, mas não fez um trabalho incólume de falhas.
Passa, então, a ditar o artigo 2º/1 da Directiva 85/337/CEE:
Os Estados-membros tomarão as disposições necessárias para garantir que, antes de concedida a aprovação, os projectos que possam ter um impacte significativo no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensão ou localização, fiquem sujeitos a um pedido de aprovação e a uma avaliação dos seus efeitos. Estes projectos são definidos no artigo 4º.
O DL 69/2000, concretamente no seu artigo 19º, vem violar a disposição desta Directiva. Da letra do artigo 2º/1 supra transposto, resulta claramente a obrigatoriedade de garantir que os projectos que possam ter um impacte significativo no ambiente fiquem sujeitos a um pedido de aprovação e a uma avaliação dos seus efeitos.
Ora, o artigo 19º DL 69/2000 vem criar uma porta de fuga a este regime, permitindo que sejam licenciados projectos que nunca foram sujeitos a avaliação por entidades independentes (é de salientar neste campo que o EIA é entregue pelo interessado no projecto, logo é normal que o favoreça).

7. Consequências da violação do Direito Comunitário
Sendo assim, parece resultar do exposto que o Estado Português se encontra em violação do Direito Comunitário, uma vez que o DL 69/2000 se afasta do disposto na Directiva 85/337/CEE.
Quais serão as consequências?
A má transposição da directiva consubstancia um incumprimento por parte do Estado Português, por força do artigo 10º do Tratado que institui a Comunidade Europeia.
Esta violação “chegará aos ouvidos” do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia através de recurso por outro Estado-Membro (chamemos-lhe o Método das Queixinhas – artigo 227º TCE) ou através de parecer da Comissão (artigo 226º TCE).
Caso o TJCE concluir que existiu, efectivamente, uma violação do Tratado, o Estado Português deve tomar as medidas necessárias para se adequar às disposições do Tratado. Caso não o faça dentro do prazo fixado pela Comissão, pode o TJCE estabelecer uma sanção pecuniária até que o cumprimento seja concretizado.
A jurisprudência do TJCE, mais concretamente no acórdão Mellor, vem ditar a obrigatoriedade de AIA quanto aos projectos indicados pelo Anexo I da Directiva 85/337/CEE. Quanto aos projectos indicados no Anexo II, estamos perante um espaço deixado à discricionáriedade de cada Estado-Membro.
Ora o DL 69/2000, ao permitir o deferimento tácito de projectos elencados no Anexo I, encontra-se em clara violação da Directiva. Até ao momento, tanto quanto sabemos, nem a Comissão ou outro Estado-Membro se pronunciaram a respeito desta violação. É apenas uma questão de tempo até um particular suscitar esta questão perante a Comissão.

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