A
autonomização do dano ambiental com o Decreto-Lei nº147/2008 de 29 de Julho
I.
A noção de dano ambiental
A
noção de dano ambiental – dano causado à integridade de um bem ambiental
natural – não se impôs com o surgimento do Direito do Ambiente. Tal facto
relacionou-se, em primeiro lugar, com a vocação primacialmente preventiva deste
ramo de Direito, bem como (e principalmente, admita-se) com uma lógica
predominantemente antropocêntrica que emergiu da Conferência do Rio, onde se
definiu os seres humanos como “centro” das preocupações ambientais (princípio
1). Os danos relevantes seriam, por isso, aqueles que correspondessem à
supressão de uma vantagem relacionada com o lesado enquanto indivíduo e não com
o ambiente enquanto realidade a se
(Carla Amado Gomes in “A responsabilidade
civil por dano ecológico”, O Direito, ano 141º, 2009, p.128).
II.
O
problema da designação
Em
termos conceptuais, Gomes Canotilho
distingue danos ambientais de danos ecológicos. Nos primeiros ocorre uma lesão
de bens jurídicos concretos constitutivos do bem ambiente (solo, água, luz,
ar), nos segundos verifica-se uma lesão do bem ambiente unitariamente
considerado (Gomes Canotilho, “Actos
Autorizativos Jurídico-Públicos e responsabilidade por danos ambientais, Boletim
da Faculdade de Direito vol.LXIX, p.14). Carla
Amado Gomes prefere utilizar a distinção de danos ambientais e ecológicos
em termos diversos, de acordo com o que se retira dos seus textos. Assim, aos
danos ecológicos faz corresponder aqueles em que ocorre a lesão de um bem ambiental
(equivale à noção de dano ambiental de Gomes Canotilho) e para os danos
ambientais reserva os danos patrimoniais/pessoais causados aos particulares por
violação do direito subjectivo ao ambiente (claro que a autora não os define
nestes termos até porque rejeita a existência de um direito subjectivo ao
ambiente, mas esta conclusão é interpretativa).
José Sendim utiliza
a designação dano ao ambiente para se referir a uma perturbação, através de
cada componente ambiental, de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado,
fazendo equivaler a dano ecológico aquele dano aos componentes ambientais
naturais tal como normativamente definidos/protegidos, isto é, de acordo com o
padrão de qualidade definido na lei. Já o dano ambiental entende ser um dano a
um direito subjectivo (José Sendim, “Responsabilidade
Civil por Danos Ecológicos”, Cadernos CEDOUA, Almedina, p.15 e ss.)
Quanto
ao que nos diz respeito, utilizaremos a dicotomia apresentada por Gomes
Canotilho dado que é essa que é utilizada por ambos os legisladores europeu e
português, o que facilita o discurso.
III – A história do dano ambiental
A
Directiva 2004/35/CE relativa à responsabilidade ambiental em termos de
prevenção e reparação de danos ambientais vem autonomizar o dano ambiental,
aplicando-se-lhe exclusivamente. Já a reparação de danos infligidos à pessoa ou
à propriedade rege-se pelos princípios gerais da responsabilidade civil de
acordo com o considerando nº 14 do Preâmbulo e do artigo 3º nº3 da Directiva.
(Jesús Jordano Fraga, “La
responsabilidad por daños ambientales en el derecho de la unión europea :
análisis de la Directiva 2004/35 de 21 de Abril, sobre responsabilidade
medioambiental”, Monografía de la Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, n°
7 (2005) 13-49).
O
nosso ordenamento jurídico não fazia a destrinça, até ao surgimento do
Decreto-Lei nº147/2008, de 29 de Julho, do dano ambiental do dano pessoal/patrimonial.
Esta ideia é expressamente assumida pelo legislador no Preâmbulo do diploma :
“Durante muitos anos a problemática
da responsabilidade ambiental foi considerada na perspectiva do dano causado às
pessoas e às coisas. O problema central consistia na reparação dos danos
subsequentes às perturbações ambientais – ou seja, os danos sofridos por
determinada pessoa nos seus bens jurídicos da personalidade ou nos seus bens
patrimoniais como consequência da contaminação do ambiente.
Com o tempo, todavia, a progressiva
consolidação do Estado de direito ambiental determinou a autonomização de um
novo conceito de danos causados à natureza em si, ao património natural e aos
fundamentos naturais da vida. (…) Assim, existe dano ecológico quando um bem
jurídico ecológico é perturbado, ou quando um determinado estado-dever de um
componente do ambiente é alterado negativamente.”
Esta
ausência resultava do acervo legislativo que tínhamos. Por um lado, a nossa lei
fundamental não distinguia (nem distingue) as duas realidades, por outro a Lei
de Bases do Ambiente revelava (e revela) uma perspectiva individualista ou
grupal do dano ambiental (artigo 40º nº4 e5). Por fim, a Lei nº83/95 de 31 de
Agosto ignora a diferença radical entre interesses individuais homogéneos e
interesses de fruição de bens colectivos, reduzindo o regime de indemnização
aos primeiros (artigo 22º nº2), (José Sendim, Ob. cit., p. 21)
A
falta de identificação clara do dano ambiental implicava que este só poderia
ser ressarcido caso resultasse de um facto lesivo de interesses individuais
cujo titular movesse uma acção inibitória contra o lesante, a qual pusesse fim
à produção da emissão prejudicial para pessoas e bens naturais. O dano a
ressarcir seria sempre e apenas o individual, não o colectivo.
Com
a entrada em vigor do Decreto-Lei nº147/2008, afirma-se a diferença entre dano
pessoal/patrimonial e dano ambiental.
IV- O âmbito de aplicação do
Decreto-Lei nº147/2008
O
Decreto-Lei nº 147/2008 só se aplica ao dano ambiental, art. 2º nº1, definido
no art. 11º nº1 d) como “toda a alteração adversa mensurável de um recurso
natural ou a deterioração mensurável do serviço de um recurso natural que
ocorram directa ou indirectamente.”
Danos ambientais são, por isso, todos aqueles
causados à água (ressalvados os abrangidos pela Lei 58/2005), ao solo e às
espécies e habitats protegidos pelo ordenamento nacional, art. 11 nº1 e). É neste
último ponto que o legislador acresceu ao regime da directiva, uma vez que esta
possuí apenas como objecto de protecção as espécies e habitats protegidos ao
abrigo do regime da Rede Natura 2000, enquanto o diploma interno remete a
identificação para a legislação aplicável (Decreto-Lei nº142/2008). Nestes
termos, os exemplares de fauna e flora protegidos são todos os que estiverem
abrangidos por instrumentos de protecção inseridos no Sistema Nacional de Áreas
Classificadas que compreende, entre outras, a Rede Natura 2000. Logo se conclui
que o nosso diploma interno alargou o âmbito objectivo de aplicação da
directiva porque abrange um maior elenco de danos ecológicos ressarcíveis.
Relativamente
às exclusões ao âmbito de aplicação, o art. 2º nº2 retoma o elenco plasmado na
directiva.
V- A exclusão do dano ao componente
ambiental “ar”
De
referir um problema que se suscita a propósito do âmbito de aplicação deste
novo regime: quid iuris relativamente aos danos causados ao ar? Estes não são
considerados como danos ambientais nem pela directiva, nem pelo diploma interno…
(Carla Amado Gomes, Ob. cit., p.140)
De
realçar que o Decreto-Lei 147/2008 foi emitido ao abrigo de uma obrigação de
transposição da directiva que não se refere aos danos causados a este componente
do ambiente, mas isso não o isenta de se coadunar com o regime plasmado na LBA
e, naturalmente, com o quadro da tutela constitucional do ambiente.
A
LBA elenca como bens ambientais naturais, no art.6º o ar, a luz, a água, o solo
vivo e subsolo, a flora e a fauna. Acresce que o art. 66 nº2 a) da CRP impõe
como tarefa do Estado e demais entidades públicas, a prevenção da poluição, não
fazendo distinção entre os recursos afectados pela mesma. Além de que os danos
a ressarcir nos termos do art. 52º nº3 a) CRP são relativos ao “ambiente”, sem
exclusão de qualquer componente.
Parece-nos, por isso, estranho que o
legislador introduza esta distinção entre bens ambientais dignos de tutela
indemnizatória e bens ambientais isentos dela. E, repare-se, inserir o ar
enquanto recurso que pode ser “danificado”, não consubstanciaria incumprimento
na transposição da directiva, antes se inseriria na sua teleologia de protecção
de componentes do ambiente e na lógica responsabilizadora que permite ressarcir
a geração presente pela degradação do estado de um determinado componente
ambiental, bem como proporcionar à geração futura idêntico grau de fruição,
repondo, sempre que possível, o estado anterior à ocorrência do facto lesivo.
E, neste caso, até o argumento do “temor reverencial” face ao Direito da União
Europeia soa ridículo, já que estamos a falar de uma transposição com mais de
um ano de atraso…
Daí
que, das duas uma, ou se conclui que o diploma interno padece de ilegalidade
reforçada por ignorar a LBA, bem como de inconstitucionalidade indirecta, por
redução do âmbito de protecção de normas constitucionais de tutela do ambiente
ou, em nome de uma interpretação útil, mas forçada, se proceda a uma leitura do
Regime de Responsabilidade por Danos Ambientais conforme à LBA e à CRP,
considerando dano ecológico também a degradação significativa, concreta,
mensurável e imputável a um/vários operadores das condições ecológicas do ar,
sujeitando estas lesões ao regime de prevenção e reparação instituído por
aquele diploma. Esta última parece ser a melhor solução.
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