sábado, 19 de maio de 2012


A autonomização do dano ambiental com o Decreto-Lei nº147/2008 de 29 de Julho



I.                   A noção de dano ambiental

A noção de dano ambiental – dano causado à integridade de um bem ambiental natural – não se impôs com o surgimento do Direito do Ambiente. Tal facto relacionou-se, em primeiro lugar, com a vocação primacialmente preventiva deste ramo de Direito, bem como (e principalmente, admita-se) com uma lógica predominantemente antropocêntrica que emergiu da Conferência do Rio, onde se definiu os seres humanos como “centro” das preocupações ambientais (princípio 1). Os danos relevantes seriam, por isso, aqueles que correspondessem à supressão de uma vantagem relacionada com o lesado enquanto indivíduo e não com o ambiente enquanto realidade a se (Carla Amado Gomes in “A responsabilidade civil por dano ecológico”, O Direito, ano 141º, 2009, p.128).



II.                O problema da designação

Em termos conceptuais, Gomes Canotilho distingue danos ambientais de danos ecológicos. Nos primeiros ocorre uma lesão de bens jurídicos concretos constitutivos do bem ambiente (solo, água, luz, ar), nos segundos verifica-se uma lesão do bem ambiente unitariamente considerado (Gomes Canotilho, “Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e responsabilidade por danos ambientais, Boletim da Faculdade de Direito vol.LXIX, p.14). Carla Amado Gomes prefere utilizar a distinção de danos ambientais e ecológicos em termos diversos, de acordo com o que se retira dos seus textos. Assim, aos danos ecológicos faz corresponder aqueles em que ocorre a lesão de um bem ambiental (equivale à noção de dano ambiental de Gomes Canotilho) e para os danos ambientais reserva os danos patrimoniais/pessoais causados aos particulares por violação do direito subjectivo ao ambiente (claro que a autora não os define nestes termos até porque rejeita a existência de um direito subjectivo ao ambiente, mas esta conclusão é interpretativa).

José Sendim utiliza a designação dano ao ambiente para se referir a uma perturbação, através de cada componente ambiental, de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, fazendo equivaler a dano ecológico aquele dano aos componentes ambientais naturais tal como normativamente definidos/protegidos, isto é, de acordo com o padrão de qualidade definido na lei. Já o dano ambiental entende ser um dano a um direito subjectivo (José Sendim, “Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos”, Cadernos CEDOUA, Almedina, p.15 e ss.)

Quanto ao que nos diz respeito, utilizaremos a dicotomia apresentada por Gomes Canotilho dado que é essa que é utilizada por ambos os legisladores europeu e português, o que facilita o discurso.  



III – A história do dano ambiental

A Directiva 2004/35/CE relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais vem autonomizar o dano ambiental, aplicando-se-lhe exclusivamente. Já a reparação de danos infligidos à pessoa ou à propriedade rege-se pelos princípios gerais da responsabilidade civil de acordo com o considerando nº 14 do Preâmbulo e do artigo 3º nº3 da Directiva. (Jesús Jordano Fraga, “La responsabilidad por daños ambientales en el derecho de la unión europea : análisis de la Directiva 2004/35 de 21 de Abril, sobre responsabilidade medioambiental”, Monografía de la Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, n° 7 (2005) 13-49).

O nosso ordenamento jurídico não fazia a destrinça, até ao surgimento do Decreto-Lei nº147/2008, de 29 de Julho, do dano ambiental do dano pessoal/patrimonial. Esta ideia é expressamente assumida pelo legislador no Preâmbulo do diploma :

“Durante muitos anos a problemática da responsabilidade ambiental foi considerada na perspectiva do dano causado às pessoas e às coisas. O problema central consistia na reparação dos danos subsequentes às perturbações ambientais – ou seja, os danos sofridos por determinada pessoa nos seus bens jurídicos da personalidade ou nos seus bens patrimoniais como consequência da contaminação do ambiente.

Com o tempo, todavia, a progressiva consolidação do Estado de direito ambiental determinou a autonomização de um novo conceito de danos causados à natureza em si, ao património natural e aos fundamentos naturais da vida. (…) Assim, existe dano ecológico quando um bem jurídico ecológico é perturbado, ou quando um determinado estado-dever de um componente do ambiente é alterado negativamente.”

Esta ausência resultava do acervo legislativo que tínhamos. Por um lado, a nossa lei fundamental não distinguia (nem distingue) as duas realidades, por outro a Lei de Bases do Ambiente revelava (e revela) uma perspectiva individualista ou grupal do dano ambiental (artigo 40º nº4 e5). Por fim, a Lei nº83/95 de 31 de Agosto ignora a diferença radical entre interesses individuais homogéneos e interesses de fruição de bens colectivos, reduzindo o regime de indemnização aos primeiros (artigo 22º nº2), (José Sendim, Ob. cit., p. 21)

A falta de identificação clara do dano ambiental implicava que este só poderia ser ressarcido caso resultasse de um facto lesivo de interesses individuais cujo titular movesse uma acção inibitória contra o lesante, a qual pusesse fim à produção da emissão prejudicial para pessoas e bens naturais. O dano a ressarcir seria sempre e apenas o individual, não o colectivo.

Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº147/2008, afirma-se a diferença entre dano pessoal/patrimonial e dano ambiental.

IV- O âmbito de aplicação do Decreto-Lei nº147/2008

O Decreto-Lei nº 147/2008 só se aplica ao dano ambiental, art. 2º nº1, definido no art. 11º nº1 d) como “toda a alteração adversa mensurável de um recurso natural ou a deterioração mensurável do serviço de um recurso natural que ocorram directa ou indirectamente.”

 Danos ambientais são, por isso, todos aqueles causados à água (ressalvados os abrangidos pela Lei 58/2005), ao solo e às espécies e habitats protegidos pelo ordenamento nacional, art. 11 nº1 e). É neste último ponto que o legislador acresceu ao regime da directiva, uma vez que esta possuí apenas como objecto de protecção as espécies e habitats protegidos ao abrigo do regime da Rede Natura 2000, enquanto o diploma interno remete a identificação para a legislação aplicável (Decreto-Lei nº142/2008). Nestes termos, os exemplares de fauna e flora protegidos são todos os que estiverem abrangidos por instrumentos de protecção inseridos no Sistema Nacional de Áreas Classificadas que compreende, entre outras, a Rede Natura 2000. Logo se conclui que o nosso diploma interno alargou o âmbito objectivo de aplicação da directiva porque abrange um maior elenco de danos ecológicos ressarcíveis.

Relativamente às exclusões ao âmbito de aplicação, o art. 2º nº2 retoma o elenco plasmado na directiva.



V- A exclusão do dano ao componente ambiental “ar”

De referir um problema que se suscita a propósito do âmbito de aplicação deste novo regime: quid iuris relativamente aos danos causados ao ar? Estes não são considerados como danos ambientais nem pela directiva, nem pelo diploma interno… (Carla Amado Gomes, Ob. cit., p.140)

De realçar que o Decreto-Lei 147/2008 foi emitido ao abrigo de uma obrigação de transposição da directiva que não se refere aos danos causados a este componente do ambiente, mas isso não o isenta de se coadunar com o regime plasmado na LBA e, naturalmente, com o quadro da tutela constitucional do ambiente.

A LBA elenca como bens ambientais naturais, no art.6º o ar, a luz, a água, o solo vivo e subsolo, a flora e a fauna. Acresce que o art. 66 nº2 a) da CRP impõe como tarefa do Estado e demais entidades públicas, a prevenção da poluição, não fazendo distinção entre os recursos afectados pela mesma. Além de que os danos a ressarcir nos termos do art. 52º nº3 a) CRP são relativos ao “ambiente”, sem exclusão de qualquer componente.

 Parece-nos, por isso, estranho que o legislador introduza esta distinção entre bens ambientais dignos de tutela indemnizatória e bens ambientais isentos dela. E, repare-se, inserir o ar enquanto recurso que pode ser “danificado”, não consubstanciaria incumprimento na transposição da directiva, antes se inseriria na sua teleologia de protecção de componentes do ambiente e na lógica responsabilizadora que permite ressarcir a geração presente pela degradação do estado de um determinado componente ambiental, bem como proporcionar à geração futura idêntico grau de fruição, repondo, sempre que possível, o estado anterior à ocorrência do facto lesivo. E, neste caso, até o argumento do “temor reverencial” face ao Direito da União Europeia soa ridículo, já que estamos a falar de uma transposição com mais de um ano de atraso…

Daí que, das duas uma, ou se conclui que o diploma interno padece de ilegalidade reforçada por ignorar a LBA, bem como de inconstitucionalidade indirecta, por redução do âmbito de protecção de normas constitucionais de tutela do ambiente ou, em nome de uma interpretação útil, mas forçada, se proceda a uma leitura do Regime de Responsabilidade por Danos Ambientais conforme à LBA e à CRP, considerando dano ecológico também a degradação significativa, concreta, mensurável e imputável a um/vários operadores das condições ecológicas do ar, sujeitando estas lesões ao regime de prevenção e reparação instituído por aquele diploma. Esta última parece ser a melhor solução.      

Sem comentários:

Enviar um comentário