segunda-feira, 7 de maio de 2012

Actos Administrativos Autorizativos com efeitos preclusivos?


     A grande questão prende-se com o saber qual o efeito que um acto administrativo autorizativo de uma actividade por parte de pessoas privadas tem sobre a qualificação como ilícita dessa actividade, está em causa, mais especificamente, o saber se um acto administrativo autorizativo tem força jurídica suficiente para justificar a produção de efeitos lesivos na esfera jurídica de terceiros, ou, pelo contrário, é razoável admitir que um acto administrativo pode, apesar da existência desta autorização, revelar-se como ilícito na ordem jurídico-civil, ficando como tal sujeito às recções jurídicas dessa ordem. – Direito do ambiente lida com vários ramos do Direito, é então necessário fazer uma harmonização entre estes ramos. Uma autorização jurídico-pública de actos privados poderá tornar lícito o que se apresentava como ilícito? Poderá justificar a causação de danos reentrantes na esfera jurídica de terceiros? Saber se o acto administrativo de licenciamento de uma actividade, por exemplo, é ou não dotado de efeitos preclusivos, isto é, exclui pretensões jurídico-privadas (através de acções de defesa, de acções inibitórias) contra  actividades, também privadas, mas juridicamente alicerçadas em actos autorizativos jurídico-públicos.
     O licenciamento de actividade, legalmente obtido e legalmente dado, tem como consequência lógica um “efeito legalizador” da actividade industrial: implica a exclusão da qualidade de agente lesante ao causador directo dos danos. O conteúdo e sentido deste chamado “efeito legalizador” tem variado ao longo do tempo, sendo que a tendência tem sido no sentido de alargar o alcance deste efeito. Assim, actualmente, o efeito de legalização passou a dizer respeito não apenas às relações entre entidades públicas mas também entre particulares, sendo que caminhamos no sentido de que o efeito legalizador designa uma causa justificativa da ilicitude no caso de lesão de bens jurídico-patrimoniais de terceiros.
     Não obstante, o reconhecimento de um acto administrativo público como causa justificativa de actividades privadas ilícitas lesivas de direitos e interesses de terceiros está longe de ser pacífíco. Assim, há quem defenda de que, em função da preservação da unidade da ordem jurídica e com vista a evitar decisões contraditórias, a qualificação como ilícita, de determinada actividade, deve ser a mesma independentemente do ramo do direito em que nos encontremos. Sendo que em posição contrária (defendida por o prof. Gomes Canotilho) diz-nos que a ideia de qualificação da ilicitude de uma determinada actividade deve ser limitada ao âmbito específico de cada ramo do Direito. Consequentemente, a categoria jurídica da ilicitude no âmbito do Direito Administrativo não seria recortada da mesma forma que a categoria da ilicitude jurídico-civil ou jurídico-penal. Assim, uma causa de justificação da ilicitude não tem efeitos irradiantes para toda a ordem jurídica; vale apenas para o ramo de direito a que directamente diz respeito (é a chamada Teoria das Ilicitudes Diferenciadas). No entanto, deve ser tomada em consideração a necessidade de ausência de contradições e a exigência de protecção da confiança muitas vezes perturbada pela concorrência de normas (normalmente, a concorrência entre uma norma jurídico privada fixadora da ilicitude e de uma norma jurídico pública consagradora de uma causa justificativa da ilicitude). Qual a solução em caso de concorrência destas normas?
     Dizer-se, sem mais, que a norma de justificação prevalece sobre a norma de ilicitude é no fundo estar a partir do pressuposto (errado, a meu ver) de que o direito administrativo é superior ao direito civil ou ao direito penal (no caso de a norma ilícita ser proveniente das regras de direito penal). Nesta linha, defende o prof. Gomes Canotilho que a norma administrativa pode prevalecer SE e na MEDIDA em que esta estabeleça claramente os pressupostos conducentes à exclusão da norma de ilicitude. Assim, esta deve conter:
1)    Expressa previsão legal do efeito justificativo, i.e, da inquestionabilidade de um direito por parte do destinatário do acto autorizativo MESMO que este importe consequências negativas na esfera jurídica de um terceiro;
2)    Previsão normativa do efeito preclusivo do acto autorizativo, i.e, exclusão da possibilidade de acções de defesa por parte de terceiros.

     Não esquecendo que a norma administrativa pode prevalecer depois de passar pelos testes constitucionais, já que a aceitação de um efeito justificativo tem ou pode ter como consequência um estreitamento da protecção de bens jurídicos de terceiros. Assim, há que ter em conta os seguintes parâmetros constitucionais:
1). Os limites dos direitos fundamentais como “direitos de defesa) – ponderação de direitos. Efeito autorizativo não poderá afastar a compensação de danos causados a direitos fundamentais dos cidadãos. Responsabilidade por actos lícitos a cargo de entidades privadas 1 ;
2). Limites derivados da dimensão jurídico objectiva dos direitos fundamentais;
3). Princípio da proibição do excesso; Adequação, aptidão e necessidade desses efeitos preclusivos de pretensões jurídicas para a prossecução dos fins legalmente individualizados e constitucionalmente protegidos.
4). Princípio da reserva de lei - pois só a lei, e não um acto administrativo, pode recortar como interesse público primário, por exemplo, o desenvolvimento de uma determinada actividade, impondo, concomitantemente, restrições a direitos fundamentais.

     Um acto autorizativo é DINÂMICO – está sujeito a condicionamentos fácticos e jurídicos; a um procedimento permanente de controlo do licenciamento. Assim, são enunciados os seguintes pressupostos jurídico administrativos dos procedimentos autorizativos com efeitos preclusivos:
1). Âmbito de eficácia pessoal: se uma actividade lesa direitos fundamentais não pode aceitar-se que o efeito autorizativo se limite aos vizinhos, não se estendendo a outros cidadãos que, dentro da comunidade, sofram também sacrifícios em consequência dessa actividade privada.
2). Âmbito e eficácia material: círculo de bens protegidos. Tese clássica: apenas a propriedade de imoveis – 1346º, 1347º - é susceptível de legitimar uma indemnização por sacrifícios. Tese moderna: se estiver em causa o sacrifício provado da vida, saúde, ambiente, qualidade de vida, a indemnização por sacrifício dos particulares deve alargar-se também a estes bens – bens imateriais também são susceptíveis de serem sacrificados por actividades ilícitas.
3). Âmbito funcional: efeito do acto público de autorização é funcionalmente limitado, efeito de preclusão termina onde não existe conformidade entre a autorização e o estabelecimento autorizado. Relativamente a este pressuposto coloca-se o problema dos actos autorizativos muito antigos, em que não era possível (nem exigível) o reconhecimento, por parte das autoridades competentes, dos perigos ligados a certas actividades. O “conteúdo regulativo” da autorização continuará a garantir o desenvolvimento de actividades que se relevaram particularmente agressivas do ambiente e qualidade de vida? Considera o prof. Gomes Canotilho que o uso de licença anacrónica é ilícito quando o seu titular conhece a ilicitude do comportamento traduzido da causação de danos GRAVES, e por vezes irreversíveis, ao ambiente e qualidade de vida. Um acto autorizativo, totalmente antiquado e desprovido de qualquer sentido segundo os dados actuais da ciência e da técnica não poderia desenvolver qualquer efeito de legalização.
4). Âmbito temporal: o início dos efeitos justificativos e preclusivos situam-se no momento em que o acto autorizativo adquiriu estabilidade definitiva, quer porque se esgotaram os prazos para a sua eliminação (contenciosa ou administrativa), quer porque sobre ele incidiu uma sentença com trânsito em julgado confirmativa da sua legalidade.

1 Já que o facto de a lesão de bens jurídicos sem qualquer compensação contraria o direito constitucional de reparação de bens. Quem paga os danos? Agente privado directamente lesante ou o Estado autorizador da actividade causadora dos danos? PARTICULAR: desde logo porque o facto de existir uma causa de justificação da ilicitude que advém de um acto autorizativo da administração não nos diz que, consequentemente, existe uma deslocação do dever de indemnizar do particular lesante para o Estado “permissor” das actividades lesivas. Posição esta que implicaria, no fundo, que o princípio do poluidor pagador se transmutasse no princípio do Estado pagador de poluições autorizadas. 1347º/3 C.C e 41ºLBA. 




Baseado num texto do Professor Gomes Canotilho (in Boletim da Faculdade de Direito, VOL. LXIX, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por danos Ambientais). 

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