A grande questão prende-se com o saber qual o efeito que
um acto administrativo autorizativo de uma actividade por parte de pessoas
privadas tem sobre a qualificação como ilícita dessa actividade, está em causa,
mais especificamente, o saber se um acto administrativo autorizativo tem força
jurídica suficiente para justificar a produção de efeitos lesivos na esfera
jurídica de terceiros, ou, pelo contrário, é razoável admitir que um acto
administrativo pode, apesar da existência desta autorização, revelar-se como
ilícito na ordem jurídico-civil, ficando como tal sujeito às recções jurídicas
dessa ordem. – Direito do ambiente lida com vários ramos do Direito, é então
necessário fazer uma harmonização entre estes ramos. Uma autorização
jurídico-pública de actos privados poderá tornar lícito o que se apresentava
como ilícito? Poderá justificar a causação de danos reentrantes na esfera
jurídica de terceiros? Saber se o acto administrativo de licenciamento de uma
actividade, por exemplo, é ou não dotado de efeitos preclusivos, isto é, exclui
pretensões jurídico-privadas (através de acções de defesa, de acções
inibitórias) contra actividades, também
privadas, mas juridicamente alicerçadas em actos autorizativos
jurídico-públicos.
O licenciamento de actividade, legalmente obtido e
legalmente dado, tem como consequência lógica um “efeito legalizador” da
actividade industrial: implica a exclusão da qualidade de agente lesante ao
causador directo dos danos. O conteúdo e sentido deste chamado “efeito
legalizador” tem variado ao longo do tempo, sendo que a tendência tem sido no
sentido de alargar o alcance deste efeito. Assim, actualmente, o efeito de
legalização passou a dizer respeito não apenas às relações entre entidades
públicas mas também entre particulares, sendo que caminhamos no sentido de que
o efeito legalizador designa uma causa justificativa da ilicitude no caso de
lesão de bens jurídico-patrimoniais de terceiros.
Não obstante, o reconhecimento de um acto administrativo
público como causa justificativa de actividades privadas ilícitas lesivas de
direitos e interesses de terceiros está longe de ser pacífíco. Assim, há quem
defenda de que, em função da preservação da unidade da ordem jurídica e com
vista a evitar decisões contraditórias, a qualificação como ilícita, de
determinada actividade, deve ser a mesma independentemente do ramo do direito
em que nos encontremos. Sendo que em posição contrária (defendida por o prof.
Gomes Canotilho) diz-nos que a ideia de qualificação da ilicitude de uma determinada
actividade deve ser limitada ao âmbito específico de cada ramo do Direito.
Consequentemente, a categoria jurídica da ilicitude no âmbito do Direito
Administrativo não seria recortada da mesma forma que a categoria da ilicitude
jurídico-civil ou jurídico-penal. Assim, uma causa de justificação da ilicitude
não tem efeitos irradiantes para toda a ordem jurídica; vale apenas para o ramo
de direito a que directamente diz respeito (é a chamada Teoria das Ilicitudes
Diferenciadas). No entanto, deve ser
tomada em consideração a necessidade de ausência de contradições e a exigência
de protecção da confiança muitas vezes perturbada pela concorrência de normas
(normalmente, a concorrência entre uma norma jurídico privada fixadora da
ilicitude e de uma norma jurídico pública consagradora de uma causa
justificativa da ilicitude). Qual a solução em caso de concorrência destas
normas?
Dizer-se, sem mais, que a norma de justificação prevalece
sobre a norma de ilicitude é no fundo estar a partir do pressuposto (errado, a
meu ver) de que o direito administrativo é superior ao direito civil ou ao
direito penal (no caso de a norma ilícita ser proveniente das regras de direito
penal). Nesta linha, defende o prof. Gomes Canotilho que a norma administrativa pode prevalecer SE e na MEDIDA em que esta
estabeleça claramente os pressupostos conducentes à exclusão da norma de
ilicitude. Assim, esta deve conter:
1) Expressa
previsão legal do efeito justificativo, i.e, da inquestionabilidade de um
direito por parte do destinatário do acto autorizativo MESMO que este importe
consequências negativas na esfera jurídica de um terceiro;
2) Previsão
normativa do efeito preclusivo do acto autorizativo, i.e, exclusão da
possibilidade de acções de defesa por parte de terceiros.
Não esquecendo que a norma administrativa só pode prevalecer depois de passar
pelos testes constitucionais, já que a aceitação de um efeito justificativo tem
ou pode ter como consequência um estreitamento da protecção de bens jurídicos
de terceiros. Assim, há que ter em conta os seguintes parâmetros
constitucionais:
1). Os limites dos direitos
fundamentais como “direitos de defesa) – ponderação de direitos. Efeito
autorizativo não poderá afastar a compensação de danos causados a direitos
fundamentais dos cidadãos. Responsabilidade por actos lícitos a cargo de
entidades privadas 1 ;
2). Limites derivados da
dimensão jurídico objectiva dos direitos fundamentais;
3). Princípio da proibição
do excesso; Adequação, aptidão e necessidade desses efeitos preclusivos de pretensões
jurídicas para a prossecução dos fins legalmente individualizados e
constitucionalmente protegidos.
4). Princípio da reserva de
lei - pois só a lei, e não um acto administrativo, pode recortar como interesse
público primário, por exemplo, o desenvolvimento de uma determinada actividade,
impondo, concomitantemente, restrições a direitos fundamentais.
Um acto autorizativo é DINÂMICO – está
sujeito a condicionamentos fácticos e jurídicos; a um procedimento permanente
de controlo do licenciamento. Assim, são enunciados os seguintes pressupostos jurídico administrativos dos
procedimentos autorizativos com efeitos preclusivos:
1). Âmbito de eficácia
pessoal: se uma actividade lesa direitos fundamentais não pode aceitar-se
que o efeito autorizativo se limite aos vizinhos, não se estendendo a outros
cidadãos que, dentro da comunidade, sofram também sacrifícios em consequência
dessa actividade privada.
2). Âmbito e eficácia
material: círculo de bens protegidos. Tese clássica: apenas a propriedade
de imoveis – 1346º, 1347º - é susceptível de legitimar uma indemnização por
sacrifícios. Tese moderna: se estiver em causa o sacrifício provado da vida,
saúde, ambiente, qualidade de vida, a indemnização por sacrifício dos
particulares deve alargar-se também a estes bens – bens imateriais também são
susceptíveis de serem sacrificados por actividades ilícitas.
3). Âmbito funcional:
efeito do acto público de autorização é funcionalmente limitado, efeito de
preclusão termina onde não existe conformidade entre a autorização e o
estabelecimento autorizado. Relativamente a este pressuposto coloca-se o
problema dos actos autorizativos muito antigos, em que não era possível (nem exigível)
o reconhecimento, por parte das autoridades competentes, dos perigos ligados a
certas actividades. O “conteúdo regulativo” da autorização continuará a garantir
o desenvolvimento de actividades que se relevaram particularmente agressivas do
ambiente e qualidade de vida? Considera o prof. Gomes Canotilho que o uso de
licença anacrónica é ilícito quando o seu titular conhece a ilicitude do
comportamento traduzido da causação de danos GRAVES, e por vezes irreversíveis,
ao ambiente e qualidade de vida. Um acto autorizativo, totalmente antiquado e
desprovido de qualquer sentido segundo os dados actuais da ciência e da técnica
não poderia desenvolver qualquer efeito de legalização.
4). Âmbito temporal: o
início dos efeitos justificativos e preclusivos situam-se no momento em que o
acto autorizativo adquiriu estabilidade definitiva, quer porque se esgotaram os
prazos para a sua eliminação (contenciosa ou administrativa), quer porque sobre
ele incidiu uma sentença com trânsito em julgado confirmativa da sua
legalidade.
Baseado num texto do Professor Gomes Canotilho (in Boletim da Faculdade de Direito, VOL. LXIX, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por danos Ambientais).
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