segunda-feira, 7 de maio de 2012


A fraude ao Direito da União Europeia da norma sobre a aplicação no tempo do Decreto-Lei nº147/2008



A Directiva 2004/35/CE de 21 de Abril do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais deveria ser transposta pelos Estados-Membros “o mais tardar” até dia 30 de Abril de 2007 de acordo com o art. 19º nº1 da mesma.

O considerando nº30 da Directiva dispõe “os danos causados antes do termo do prazo de transposição da presente directiva- i.e. até 30 de Abril de 2007- não serão abrangidos pelas suas disposições” (itálico nosso), pelo que se conclui que a teleologia do diploma se concretiza nos danos ocorridos a partir de 30 de Abril de 2007.

Portugal transpôs a Directiva através do Decreto-Lei  nº 147/2008 de 29 de Julho (mais de um ano de atraso…) com uma regulação algo especial no art.35º sobre a aplicação no tempo do diploma. Assim, lê-se que “o disposto no capítulo III do presente Decreto-Lei não se aplica aos danos: a) causados por quaisquer emissões, acontecimentos ou incidentes, anteriores à data da entrada em vigor do presente decreto-lei; b) Causados por quaisquer emissões, acontecimentos ou incidentes, que tenham ocorrido após a entrada em vigor do presente decreto-lei, mas decorram de uma actividade específica realizada e concluída antes da respectiva data” (sombreados e itálicos nossos).

Portanto, Portugal não só esteve quase um ano em incumprimento por violação do dever de transposição de uma directiva, como ainda tem o arrojo de reduzir em mais de um ano o âmbito de aplicação normativo da mesma.

No que respeita ao direito da União Europeia, cumpre salientar a sua efectividade na relação com os direitos dos Estados-Membros.

 Em virtude da exigência do primado do Direito da União Europeia, dos princípios da aplicabilidade directa e do efeito directo – critérios gerais de articulação entre o ordenamento jurídico da União Europeia e os ordenamentos jurídicos nacionais – os Estados-Membros estão obrigados a respeitar e a fazer respeitar as normas europeias, através dos órgãos internos competentes, de natureza legislativa, administrativa ou judicial. Concretizando: se o Estado Português não cumprir a obrigação de transposição correcta e atempada de uma directiva comunitária para a ordem jurídica interna, as consequências estão bem definidas na jurisprudência comunitária: 1) no plano comunitário, a possibilidade de instaurar uma acção por incumprimento, por iniciativa da Comissão ou qualquer outro Estado, que pode culminar na declaração de incumprimento, a exigir do Estado-membro condenado a transposição efectiva da directiva; em face da eventual recusa de dar execução interna ao acórdão do Tribunal de Justiça, pode este decidir a aplicação de sanções pecuniárias ao Estado-membro relapso; 2) no plano interno, verificados os requisitos do efeito directo da Directiva, as suas normas podem, mesmo na falta de transposição, ser invocadas junto dos tribunais nacionais por qualquer interessado; finalmente, e ainda no que se refere às consequências jurídicas associadas à violação de legislação comunitária pelos Estados-membros, importa ter presente o princípio geral da responsabilidade extracontratual, cuja semente foi introduzida com o Acórdão Francovich, que pode fundamentar a instauração de acções de indemnização junto dos tribunais nacionais com vista ao ressarcimento dos prejuízos resultantes da infracção ao normativo comunitário, mormente a não transposição de directivas.1

Esta dilação do prazo de transposição contribui para um alargamento dos casos excluídos da possibilidade de condenação no ressarcimento de danos ecológicos, contrariando a vocação de tutela ambiental contida no instrumento comunitário e violando, ainda, o dever de tomar todas as medidas para garantir a execução das obrigações decorrentes do Tratado plasmado no art. 4º nº3 parágrafo 2 do Tratado da União Europeia.2

Neste domínio específico do Direito do Ambiente tais manobras são frequentes e já foram alvo de condenações expressas no Tribunal de Justiça. Vejamos o caso Bund Naturschutz Bayern3, no qual a Alta Instância do Luxemburgo entendeu que “não se permite a um Estado-membro, que transpôs a directiva na sua ordem jurídica nacional depois de 3 de Julho de 1988, data do termo do prazo de transposição, dispensar, por meio de uma disposição transitória, das obrigações relativas à avaliação dos efeitos no ambiente exigida pela directiva, os projectos cujo processo de aprovação tinha sido iniciado antes da entrada em vigor da lei nacional de transposição dessa directiva mas depois de 3 de Julho de 1988.” Retiramos, deste modo, que não é possível introduzir no diploma de transposição um período transitório que defraude o termo inicial de vigência estabelecido numa directiva.

Na doutrina portuguesa, Carla Amado Gomes4 defende que se deve, por isso, fazer uma leitura dos artigos referidos (art. 33º e 35º do RPRDE) conforme ao Direito da União Europeia, reportando a data de início de aplicação do RPDE a 30 de Abril de 2007 e não a 1 de Abril de 2008. Contra, na doutrina espanhola, Germán Valencia Martín5, negando o efeito directo de disposições que imputam obrigações aos particulares, com base em jurisprudência constante do Tribunal de Justiça. Esta posição tornou-se, contudo, insustentável depois do acórdão do Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2004, no caso Delena Wells que estabeleceu a trilaterização contenciosa da relação jurídica ambiental como defende Jesús Jordano Fraga6. Concluímos, desta forma, que, se o mito da proibição de invocação de normas de directivas entre particulares com vista à imposição de deveres de protecção do ambiente cedeu, faz todo o sentido que o art. 35º do Decreto-Lei 147/2008 seja interpretado conforme ao Direito da União Europeia (efeito directo da Directiva).

Podemos realçar, a título de comparação, a solução espanhola que, transpondo a Directiva com seis meses de atraso, fez, para os referidos efeitos, retroagir a data de vigência a 30 de Abril de 2007 – disposição transitória e única, 1.a), da Ley 26/2007, de 23 de Outubro7.













1Maria Luísa Duarte, Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, Coimbra Editora, 2006, pp.121-122

2Carla Amado Gomes, A Responsabilidade civil por dano ecológico. Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo Decreto-Lei nº147/2008 de 29 de Julho, in O Direito ano 141º, 2009, pp. 159-160

3 Caso C-396/92 de 9 de Agosto de 1994

4 Carla Amado Gomes, Ob. Cit., pág.160

5Germán Valencia Martín, El impacto (favorable) de la directiva 2004/35/CE en el “sistema” español actual de responsabilidade por daños ambientales, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, número monográfico, pp.109 e ss.

6Jesús Jordano Fraga, La responsabilidad por daños ambientales en el derecho de la unión europea : análisis de la Directiva 2004/35 de 21 de Abril, sobre responsabilidade medioambiental, Monografía de la Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, n° 7 (2005) 13-49.

7Carla Amado Gomes, Ob. Cit., página 159 nota 72

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