A fraude ao Direito da União Europeia da norma sobre a
aplicação no tempo do Decreto-Lei nº147/2008
A
Directiva 2004/35/CE de 21 de Abril do Parlamento Europeu e do Conselho
relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de
danos ambientais deveria ser transposta pelos Estados-Membros “o mais tardar”
até dia 30 de Abril de 2007 de acordo com o art. 19º nº1 da mesma.
O
considerando nº30 da Directiva dispõe “os danos causados antes do termo do
prazo de transposição da presente directiva- i.e. até 30 de Abril de 2007- não serão abrangidos pelas suas
disposições” (itálico nosso), pelo que se conclui que a teleologia do diploma
se concretiza nos danos ocorridos a partir de 30 de Abril de 2007.
Portugal
transpôs a Directiva através do Decreto-Lei
nº 147/2008 de 29 de Julho (mais de um ano de atraso…) com uma regulação
algo especial no art.35º sobre a aplicação no tempo do diploma. Assim, lê-se
que “o disposto no capítulo III do presente Decreto-Lei não se aplica aos danos:
a) causados por quaisquer emissões, acontecimentos ou incidentes, anteriores
à data da entrada em vigor do presente decreto-lei; b) Causados por
quaisquer emissões, acontecimentos ou incidentes, que tenham ocorrido após a
entrada em vigor do presente decreto-lei, mas decorram de uma actividade
específica realizada e concluída antes da respectiva data” (sombreados
e itálicos nossos).
Portanto,
Portugal não só esteve quase um ano em incumprimento por violação do dever de
transposição de uma directiva, como ainda tem o arrojo de reduzir em mais de um
ano o âmbito de aplicação normativo da mesma.
No
que respeita ao direito da União Europeia, cumpre salientar a sua efectividade
na relação com os direitos dos Estados-Membros.
Em virtude da exigência do primado do Direito
da União Europeia, dos princípios da aplicabilidade directa e do efeito directo
– critérios gerais de articulação entre o ordenamento jurídico da União
Europeia e os ordenamentos jurídicos nacionais – os Estados-Membros estão
obrigados a respeitar e a fazer respeitar as normas europeias, através dos
órgãos internos competentes, de natureza legislativa, administrativa ou
judicial. Concretizando: se o Estado Português não cumprir a obrigação de
transposição correcta e atempada de uma directiva comunitária para a ordem jurídica
interna, as consequências estão bem definidas na jurisprudência comunitária: 1)
no plano comunitário, a possibilidade de instaurar uma acção por incumprimento,
por iniciativa da Comissão ou qualquer outro Estado, que pode culminar na
declaração de incumprimento, a exigir do Estado-membro condenado a transposição
efectiva da directiva; em face da eventual recusa de dar execução interna ao
acórdão do Tribunal de Justiça, pode este decidir a aplicação de sanções
pecuniárias ao Estado-membro relapso; 2) no plano interno, verificados os
requisitos do efeito directo da Directiva, as suas normas podem, mesmo na falta
de transposição, ser invocadas junto dos tribunais nacionais por qualquer
interessado; finalmente, e ainda no que
se refere às consequências jurídicas associadas à violação de legislação
comunitária pelos Estados-membros, importa ter presente o princípio geral da
responsabilidade extracontratual, cuja semente foi introduzida com o Acórdão
Francovich, que pode fundamentar a instauração de acções de indemnização junto
dos tribunais nacionais com vista ao ressarcimento dos prejuízos resultantes da
infracção ao normativo comunitário, mormente a não transposição de directivas.1
Esta
dilação do prazo de transposição contribui para um alargamento dos casos
excluídos da possibilidade de condenação no ressarcimento de danos ecológicos,
contrariando a vocação de tutela ambiental contida no instrumento comunitário e
violando, ainda, o dever de tomar todas as medidas para garantir a execução das
obrigações decorrentes do Tratado plasmado no art. 4º nº3 parágrafo 2 do Tratado
da União Europeia.2
Neste
domínio específico do Direito do Ambiente tais manobras são frequentes e já
foram alvo de condenações expressas no Tribunal de Justiça. Vejamos o caso Bund
Naturschutz Bayern3, no qual a Alta Instância do Luxemburgo entendeu
que “não se permite a um Estado-membro, que transpôs a directiva na sua
ordem jurídica nacional depois de 3
de Julho de 1988, data do termo do prazo
de transposição, dispensar,
por meio de uma disposição transitória, das obrigações relativas à avaliação
dos efeitos no ambiente exigida pela directiva, os projectos cujo processo de
aprovação tinha sido iniciado antes da entrada em vigor da lei nacional de
transposição dessa directiva mas depois de 3 de Julho de 1988.” Retiramos, deste modo, que não é possível introduzir
no diploma de transposição um período transitório que defraude o termo inicial
de vigência estabelecido numa directiva.
Na
doutrina portuguesa, Carla Amado Gomes4 defende que se deve, por
isso, fazer uma leitura dos artigos referidos (art. 33º e 35º do RPRDE)
conforme ao Direito da União Europeia, reportando a data de início de aplicação
do RPDE a 30 de Abril de 2007 e não a 1 de Abril de 2008. Contra, na doutrina
espanhola, Germán Valencia Martín5, negando o efeito directo de
disposições que imputam obrigações aos particulares, com base em jurisprudência
constante do Tribunal de Justiça. Esta posição tornou-se, contudo,
insustentável depois do acórdão do Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2004,
no caso Delena Wells que estabeleceu a trilaterização contenciosa da relação
jurídica ambiental como defende Jesús Jordano Fraga6. Concluímos,
desta forma, que, se o mito da proibição de invocação de normas de directivas
entre particulares com vista à imposição de deveres de protecção do ambiente
cedeu, faz todo o sentido que o art. 35º do Decreto-Lei 147/2008 seja
interpretado conforme ao Direito da União Europeia (efeito directo da
Directiva).
Podemos
realçar, a título de comparação, a solução espanhola que, transpondo a
Directiva com seis meses de atraso, fez, para os referidos efeitos, retroagir a
data de vigência a 30 de Abril de 2007 – disposição transitória e única, 1.a),
da Ley 26/2007, de 23 de Outubro7.
1Maria
Luísa Duarte, Estudos de Direito da União
e das Comunidades Europeias, Coimbra Editora, 2006, pp.121-122
2Carla
Amado Gomes, A Responsabilidade civil por
dano ecológico. Reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo
Decreto-Lei nº147/2008 de 29 de Julho, in O Direito ano 141º, 2009, pp. 159-160
3
Caso C-396/92 de 9 de Agosto de 1994
4
Carla Amado Gomes, Ob. Cit., pág.160
5Germán
Valencia Martín, El impacto (favorable)
de la directiva 2004/35/CE en el “sistema” español actual de responsabilidade por
daños ambientales, in Revista Aranzadi de Derecho Ambiental, número monográfico,
pp.109 e ss.
6Jesús
Jordano Fraga, La responsabilidad por
daños ambientales en el derecho de la unión europea : análisis de la Directiva
2004/35 de 21 de Abril, sobre responsabilidade medioambiental, Monografía de la Revista
Aranzadi de Derecho Ambiental,
n° 7 (2005) 13-49.
7Carla
Amado Gomes, Ob. Cit., página 159
nota 72
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