segunda-feira, 7 de maio de 2012

O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E A TUTELA DE URGÊNCIA

(baseado num texto da Prof. Carla Amado Gomes)

            No Direito alemão dos anos 70 do século XX, o princípio da precaução assumiu especial relevância em virtude de diversos acontecimentos graves e com consequências nefastas para o meio ambiente. Este princípio depressa teve impacto no âmbito do Direito Internacional. Da Declaração resultante da Segunda Conferência Ministerial do Mar do Norte – Declaração de Londres de 1987 – consta uma das primeiras formulações deste princípio, consubstanciando um compromisso por parte dos signatários em proteger o ecossistema do Mar do Norte. Esta Declaração propunha-se a dar os primeiros passos no que toca ao principle of precautionary action, reduzindo as emissões de substâncias que prejudicassem a fauna e flora deste ecossistema (“…this applies especially when there is reason to assume that certain damage or harmful effects on the living resources of the sea are likely to be caused by such substances, even where there is no scientific evidence to prove a causal link between emissions and effects…”). Daqui em diante, a precaução teve larga aceitação na comunidade internacional, sempre respeitando uma ideia de capacidade individualizada de cada Estado (Declaração do Rio), reflectindo também a ideia de irreversibilidade do dano, bem como o princípio da proporcionalidade patenteado pelas cost-effective measures. No entanto, aquilo que foi, inicialmente, algo dirigido especificamente à protecção da biodiversidade marinha passou, em pouco tempo, a abranger várias áreas do ambiente.
            A precaução patenteada por estas Declarações foi considerada como um princípio de Direito Internacional no campo da protecção ambiental. Esta posição era consequência da consolidação de uma opinio iuris que conformava um costume internacional em redor da nova atitude precaucionista. Porém, não foi unânime a aceitação da sua natureza de princípio, a sua autonomização face à prevenção. A verdade é que a autonomização da precaução, enquanto significado de uma prevenção alargada, resulta de uma antecipação do risco em virtude da efectiva protecção de bens jurídicos (ambientais) fundamentais e tão intensamente frágeis. Ora vejamos: a perspectiva de alargamento da prevenção baseia-se no grau da lesão e não na natureza do dano, uma vez que não se admite a actividade potencialmente lesiva apenas quando dela possa resultar um perigo (ocorrência de lesões concretamente aferível a partir de juízos de probabilidade com assento em dados empíricos estatisticamente atestados ou teorias científicas geradoras de um largo consenso entre especialistas), mas antecipa-se o momento preventivo através de uma dúvida fundamentada sobre a probabilidade séria dessa actividade vir a gerar danos irreversíveis (risco – uma vez que o nexo de causalidade não está empírica ou cientificamente comprovado). Daqui emerge o imperativo da tutela cautelar dos bens em jogo, cuja natureza ténue, cuja premência de tutela face à iminência de agressões, se basta com a existência de dúvidas relevantes acerca dos efeitos destrutivos que poderá vir a ter uma atitude menos diligente. Havendo dúvida, a decisão deve ser tomada num sentido in dubio pro ambiente. O periculum in mora é, assim, um pressuposto indiscutível e imprescindível do princípio da precaução.
            A tutela deste tipo de bens jurídicos, constitucionalmente relevantes (art. 66º, nº 2, alíneas a) e d) da CRP; Lei de Bases do Ambiente – Lei nº11/87, de 7 de Abril), só pode morar num momento anterior, através da precaução, e nunca num momento posterior, através do ressarcimento pelos danos causados. Compreende-se que esta tutela não possa, em coerência com a necessidade crescente de preservação do bem ambiente, bastar-se com uma mera compensação monetária, pois, desse modo, estaríamos a frustrar toda a ratio da protecção ambiental, cujas lesões se afiguram muitas vezes definitivas e irreversíveis. Estaríamos, pois, a fazer nada mais que um pacto silencioso com a aniquilação de um bem constitucionalmente protegido e intergeracional, cuja tutela nunca poderá, em consciência, consubstanciar-se apenas numa protecção a posteriori, meramente patrimonial (ineficaz, portanto). A tutela jurisdicional efectiva do art. 268º da CRP estaria a ser violentamente agredida se tal concepção fosse de aceitar. Se é certo que a LBA privilegia a reconstituição natural (art. 48º), a verdade é que tudo deverá ser feito para que a prevenção tenha precedência e preferência face à responsabilização, visto que nessa fase o mal já estará feito. A tutela de urgência, cautelar, tem, por estes motivos, primazia nos domínios ambiental e sanitário (art. 381º e seg. do CPC; art. 112º e seg. do CPTA). Perante os bens em causa e pela necessidade de os salvaguardar de forma séria e efectiva, o tempo processual das acções (principais) judiciais é inaceitavelmente extenso: daqui despoleta, emerge o periculum in mora (tal como havia supra referido), sem o qual a espera por uma decisão em processo principal, mesmo que esta viesse a ser favorável, comprometeria de forma irreversível o efeito útil dessa sentença, porque aquilo que se tentava evitar e proteger acabaria por ser efectivamente afectado.
            Providências cautelares e prevenção encontram-se intrinsecamente ligadas. Porém, cumpre esclarecer de que forma é que o alargamento da prevenção ao risco (trazido pelo principio da precaução) pode introduzir uma tutela cautelar mais intensa. Bastando-se com a existência de dúvidas acerca da lesividade da intervenção no meio ambiente, o efeito é de um quase automatismo na concessão das providências. Além do mais, é ao autor da intervenção que cabe provar que dela não resultarão os danos para o bem jurídico em causa suscitados por essa dúvida, numa lógica clara de inversão do ónus da prova (arts. 342º, nº 1 e 487º, nº 1, 1ª parte do CC). Quanto ao primeiro aspecto, se a lei prevê a obrigatoriedade de um estudo de impacto ambiental anterior ao licenciamento de certas actividades potencialmente lesivas do meio ambiente e da saúde, a sua inexistência ou graves incorrecções levam à concessão automática da providência. Estaremos perante uma presunção de lesividade. No que toca à inversão do ónus da prova, sucede que, quase sempre, os operadores económicos interessados estão melhor apetrechados e munidos de arsenal técnico e de informação capaz de dissipar as dúvidas (pré) existentes acerca do facto de uma sua actuação ser ou não danosa para estes bens jurídicos. Para além de todo o acervo técnico, ainda existe hoje um direito à informação ambiental (no âmbito europeu, a Convenção de Aarhus sobre o direito de acesso à informação ambiental, de participação em procedimentos de consulta ambiental e de acesso à justiça, de 1998; a Directiva 2003/4/CE, de 28 de Janeiro; e a Lei nº 19/2006, de 12 de Junho, que regula o direito à informação ambiental junto de entidades públicas), complementado por meios jurisdicionais específicos e céleres (arts. 104º a 108º do CPTA); não esquecer ainda a existência de mecanismos de publicitação de informação no âmbito de procedimentos de licenciamento ambiental (a título de exemplo, o art. 15º do DL nº 69/2000, de 3 de Maio). A inversão deste ónus é necessária por imposição de uma prevenção alargada, precaução, quando estão em causa bens susceptíveis de sofrer lesões graves, cujo alcance e repercussões se sabe serem perniciosos, mas cujo alcance é incerto. Quem cria o risco deve provar que este ainda se situa dentro do risco permitido pela norma em momento prévio à prática do acto de autorização. A restrição ao princípio da liberdade de iniciativa económica é inequivocamente admissível quando posta à luz do princípio, também ele constitucional, e moderador, da proporcionalidade, por se afigurar como necessária à protecção desses bens, adequada (como já referi, o operador económico dispõe de meios mais capazes de ilidir a presunção de lesividade) e não excessiva. A inversão do ónus da prova (procedimental e, sobretudo, processual) deve cumprir três requisitos: (1) a sua finalidade tem de se dirijir à protecção de bens e valores constitucionalmente consagrados (arts. 9º, alíneas d) e e) e 66º, nº2 da CRP); (2) da sua necessidade tem de resultar efectividade no que toca à justiça ambiental (art. 52º, nº 3, alínea a) da CRP); (3) e, por fim, a sua efectivação não pode configurar uma desproporção e desequilíbrio ilegítimos do ponto vista da equidade processual, na vertente da igualdade de armas (arts. 20º, nº4 e 18º, nos2 e 3 da CRP).
            Fora dos casos de inversão do ónus da prova previstos pelo legislador, pode o juiz, no âmbito das suas atribuições processuais no que diz respeito à descoberta da verdade material, ordenar a produção de provas capazes de esclarecer acerca do risco, ou da sua inexistência, da actividade que o operador visa prosseguir (art. 519º, nº1 do CPC; arts. 1º, nº2 e 17º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto – Lei da Acção Popular).
            Não obstante, a parte que alega a lesão nunca fica dispensada de uma demonstração mínima dos factores de risco que estarão na sua origem (não basta alegar que há suspeitas de risco). Observando a importância deste ónus de uma perspectiva diferente, se a lesão do bem jurídico se tornar numa realidade, será muito complicado ao lesado provar e obter todas as informações necessárias sobre as causas dessa lesão. Daqui resulta que a tutela jurisdicional do lesado poderia sair frustrada e comprometida (cabendo no princípio da precaução, desde que se identifique o dano e respectivas causas) se não coubesse ao autor da atitude presumivelmente lesiva o ónus da demonstração de que essa actividade não é adequada a produzir o prejuízo.
            Se, no caso concreto, o julgador chegar à conclusão de que estão preenchidos os pressupostos de que depende a concessão de uma providência cautelar (periculum in mora e fumus boni iuris), terá, ainda, que proceder a uma ponderação dos interesses em presença, apelando a parâmetros de equilíbrio e de necessidade (art. 120º, nos2 e 3, respectivamente, do CPTA). Se, comparando os danos que decorrerão da concessão da providência com os danos que resultariam da sua não concessão, concluir que os primeiros são superiores, o juiz deverá recusar a providência cautelar.
            No campo jurisprudencial, temos como exemplo o caso da co-incineração na cimenteira de Souselas. Em 2006, o Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional emitiu um Despacho decretando que “o projecto de co-incineração de resíduos industriais perigosos no centro de produção de Souselas fosse totalmente dispensado do procedimento de avaliação de impacto ambiental, ficando a presente dispensa condicionada ao cumprimento integral das medidas de minimização anexas ao presente despacho”, perante o qual o Município de Coimbra requereu uma providência cautelar de suspensão da eficácia do mesmo, acessoriamente a uma acção administrativa especial de impugnação da sua validade. O TAF de Coimbra concedeu provimento ao pedido, considerando que (1) existia urgência na suspensão do despacho, uma vez que a co-incineração de resíduos industriais perigosos é potencialmente perigosa para a saúde pública (apesar de o Ministério e a CIMPOR terem juntado estudos que excluem a existência de riscos); (2) existia fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado, por serem prováveis lesões para a saúde pública que não se compadecem com a espera até à prolação da decisão final (apesar de o requerente não ter oferecido prova do dano de difícil reparação); (3) o princípio da precaução (que, ao contrário da realidade comunitária ou francesa, não encontra consagração geral no Direito português) implica uma inversão do ónus da prova, o que se traduz na necessidade de o Ministério provar a inocuidade da actividade e na dispensa total de caracterização e sumária demonstração do periculum in mora  por parte do requerente – “Havendo dúvida, a decisão é tomada num sentido in dubio pro ambiente. Assim sendo, tendo presente que ainda estamos no âmbito cautelar, estando em causa a prevenção da utilidade de uma eventual e futura sentença favorável no processo principal, considerando que o que está em causa na acção principal é apurar se estão reunidos os pressupostos de dispensa de avaliação de impacto ambiental, cuja função primordial consiste na prevenção de potenciais riscos para o ambiente e saúde através da avaliação prévia das eventuais consequências de um determinado projecto ou actividade, ponderando ainda que a questão a decidir se insere numa área do Direito em que vigora o princípio da precaução, podemos afirmar que estamos no domínio da “tripla cautela”, que significa que, em caso de dúvida, o julgador se deve decidir a favor do ambiente, saúde pública e qualidade de vida”; (4) não se verificavam indícios de falta de procedibilidade do pedido (uma vez que a inexistência de avaliação de impacto ambiental, único meio de prova da ausência de lesividade, viola o DL nº 69/2000, de 3 de Maio – art. 1º, nº3, alínea a) e Anexo I, 9 –, sendo que o tribunal, no curto espaço de ponderação concedido pelo processo cautelar, não pode avaliar a verificação das circunstâncias excepcionais que justificam a dispensa, nos termos do art. 3º, nº1 do referido DL); (5) e, por último, que “os danos que poderão resultar do decretamento da suspensão de eficácia requerida são incomensuravelmente inferiores aos que podem potencialmente advir da sua concessão” (note-se que ambas as partes alegavam o interesse na salvaguarda da saúde pública). O TCA do Norte confirmou a decisão, afirmando que o periculum se caracterizava pela “impossibilidade de, uma vez negada a providência, reintegrar no plano dos factos a situação existente, por ser inelutável que os actos materiais de co-incineração que hajam tido lugar não poderão ser eliminados por efeito da prolação da sentença na acção principal”.
            Aqui chegados, podemos concluir que a distinção entre prevenção e precaução, independentemente das suas diferenças, desagua sempre na tutela, não repressiva ou reactiva, mas sim preventiva dos bens jurídicos ambientais e sanitários. Assim, a tutela cautelar reveste suprema importância, talvez mesmo a única capaz de produzir uma aplicação real e efectiva do Direito, na protecção destes bens de extraordinário melindre.


·         Bibliografia:

            GOMES, Carla Amado, As Providências Cautelares e o “Princípio da Precaução”: Ecos da Jurisprudência, II Seminário Luso-Brasileiro (Direito Público e Privado) promovido pelo NELB, 2007.

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