No Direito alemão dos anos 70 do
século XX, o princípio da precaução assumiu especial relevância em virtude de
diversos acontecimentos graves e com consequências nefastas para o meio
ambiente. Este princípio depressa teve impacto no âmbito do Direito
Internacional. Da Declaração resultante da Segunda Conferência Ministerial do
Mar do Norte – Declaração de Londres de 1987 – consta uma das primeiras
formulações deste princípio, consubstanciando um compromisso por parte dos
signatários em proteger o ecossistema do Mar do Norte. Esta Declaração propunha-se a dar os primeiros passos no que toca ao principle of precautionary action,
reduzindo as emissões de substâncias que prejudicassem a fauna e flora deste
ecossistema (“…this applies especially
when there is reason to assume that certain damage or harmful effects on the
living resources of the sea are likely to be caused by such substances, even
where there is no scientific evidence to prove a causal link between emissions
and effects…”). Daqui
em diante, a precaução teve larga aceitação na comunidade internacional, sempre
respeitando uma ideia de capacidade individualizada de cada Estado (Declaração
do Rio), reflectindo também a ideia de irreversibilidade do dano, bem como o
princípio da proporcionalidade patenteado pelas cost-effective measures. No entanto, aquilo que foi, inicialmente,
algo dirigido especificamente à protecção da biodiversidade marinha passou, em pouco
tempo, a abranger várias áreas do ambiente.
A precaução patenteada por estas
Declarações foi considerada como um princípio de Direito Internacional no campo
da protecção ambiental. Esta posição era consequência da consolidação de uma opinio iuris que conformava um costume
internacional em redor da nova atitude precaucionista. Porém, não
foi unânime a aceitação da sua natureza de princípio, a sua autonomização face
à prevenção. A verdade é que a autonomização da precaução, enquanto significado
de uma prevenção alargada, resulta de uma antecipação
do risco em virtude da efectiva protecção de bens jurídicos
(ambientais) fundamentais e tão intensamente frágeis. Ora vejamos: a
perspectiva de alargamento da prevenção baseia-se no grau da lesão e não na
natureza do dano, uma vez que não se admite a actividade potencialmente lesiva
apenas quando dela possa resultar um perigo (ocorrência de lesões concretamente
aferível a partir de juízos de probabilidade com assento em dados empíricos
estatisticamente atestados ou teorias científicas geradoras de um largo
consenso entre especialistas), mas antecipa-se
o momento preventivo através de uma dúvida fundamentada sobre a
probabilidade séria dessa actividade vir a gerar danos irreversíveis
(risco – uma vez que o nexo de causalidade não está empírica ou cientificamente
comprovado). Daqui emerge o imperativo da tutela
cautelar dos bens em jogo, cuja natureza ténue, cuja premência de tutela
face à iminência de agressões, se basta com a existência de dúvidas
relevantes acerca dos efeitos destrutivos que poderá vir a ter uma
atitude menos diligente. Havendo dúvida, a decisão deve ser tomada num sentido in dubio pro ambiente. O periculum
in mora é, assim, um pressuposto indiscutível e imprescindível do princípio
da precaução.
A tutela deste tipo de bens
jurídicos, constitucionalmente relevantes (art. 66º, nº 2, alíneas a) e d) da
CRP; Lei de Bases do Ambiente – Lei nº11/87, de 7 de Abril), só pode morar num
momento anterior, através da precaução, e nunca num momento posterior, através
do ressarcimento pelos danos causados. Compreende-se que esta tutela não possa,
em coerência com a necessidade crescente de preservação do bem ambiente,
bastar-se com uma mera compensação monetária, pois, desse modo, estaríamos a
frustrar toda a ratio da protecção
ambiental, cujas lesões se afiguram muitas vezes definitivas e irreversíveis.
Estaríamos, pois, a fazer nada mais que um pacto silencioso com a aniquilação
de um bem constitucionalmente protegido e intergeracional, cuja tutela nunca
poderá, em consciência, consubstanciar-se apenas numa protecção a posteriori, meramente patrimonial
(ineficaz, portanto). A tutela jurisdicional efectiva do art. 268º da CRP
estaria a ser violentamente agredida se tal concepção fosse de aceitar. Se é
certo que a LBA privilegia a reconstituição natural (art. 48º), a verdade é que
tudo deverá ser feito para que a prevenção
tenha precedência e preferência face à responsabilização,
visto que nessa fase o mal já estará feito. A tutela de urgência, cautelar,
tem, por estes motivos, primazia nos domínios ambiental e sanitário (art. 381º
e seg. do CPC; art. 112º e seg. do CPTA). Perante os bens em causa e pela
necessidade de os salvaguardar de forma séria e efectiva, o tempo processual
das acções (principais) judiciais é inaceitavelmente extenso: daqui despoleta,
emerge o periculum in mora (tal como havia supra referido), sem o qual a
espera por uma decisão em processo principal, mesmo que esta viesse a ser
favorável, comprometeria de forma irreversível o efeito útil dessa sentença,
porque aquilo que se tentava evitar e proteger acabaria por ser efectivamente
afectado.
Providências cautelares e prevenção
encontram-se intrinsecamente ligadas. Porém, cumpre esclarecer de que forma é
que o alargamento da prevenção ao risco (trazido pelo principio da precaução)
pode introduzir uma tutela cautelar mais intensa. Bastando-se com a existência
de dúvidas acerca da lesividade da intervenção no meio ambiente, o efeito é de
um quase automatismo na concessão das providências. Além do mais, é ao autor da
intervenção que cabe provar que dela não resultarão os danos para o bem
jurídico em causa suscitados por essa dúvida, numa lógica clara de inversão do
ónus da prova (arts. 342º, nº 1 e 487º, nº 1, 1ª parte do CC). Quanto ao
primeiro aspecto, se a lei prevê a obrigatoriedade de um estudo de impacto
ambiental anterior ao licenciamento de certas actividades potencialmente
lesivas do meio ambiente e da saúde, a sua inexistência ou graves incorrecções levam
à concessão automática da providência. Estaremos perante uma presunção
de lesividade. No que toca à inversão do ónus da prova, sucede
que, quase sempre, os operadores económicos interessados estão melhor
apetrechados e munidos de arsenal técnico e de informação capaz de dissipar as dúvidas
(pré) existentes acerca do facto de uma sua actuação ser ou não danosa para
estes bens jurídicos. Para além de todo o acervo técnico, ainda existe hoje um
direito à informação ambiental (no âmbito europeu, a Convenção de Aarhus sobre
o direito de acesso à informação ambiental, de participação em procedimentos de
consulta ambiental e de acesso à justiça, de 1998; a Directiva 2003/4/CE, de 28
de Janeiro; e a Lei nº 19/2006, de 12 de Junho, que regula o direito à
informação ambiental junto de entidades públicas), complementado por meios
jurisdicionais específicos e céleres (arts. 104º a 108º do CPTA); não esquecer
ainda a existência de mecanismos de publicitação de informação no âmbito de
procedimentos de licenciamento ambiental (a título de exemplo, o art. 15º do DL
nº 69/2000, de 3 de Maio). A inversão deste ónus é necessária por imposição de
uma prevenção alargada, precaução, quando estão em causa bens susceptíveis de
sofrer lesões graves, cujo alcance e repercussões se sabe serem perniciosos,
mas cujo alcance é incerto. Quem cria o risco deve provar que este ainda se
situa dentro do risco permitido pela norma em momento prévio à prática do acto
de autorização. A restrição ao princípio da liberdade de iniciativa económica é
inequivocamente admissível quando posta à luz do princípio, também ele
constitucional, e moderador, da proporcionalidade, por se
afigurar como necessária à protecção desses bens, adequada (como já referi, o
operador económico dispõe de meios mais capazes de ilidir a presunção de
lesividade) e não excessiva. A inversão do ónus
da prova (procedimental e, sobretudo, processual) deve cumprir três
requisitos: (1) a sua
finalidade tem de se dirijir à protecção de bens e valores constitucionalmente
consagrados (arts. 9º, alíneas d) e e) e 66º, nº2 da CRP); (2) da sua necessidade tem de resultar efectividade no que toca à
justiça ambiental (art. 52º, nº 3, alínea a) da CRP); (3) e, por fim, a sua efectivação não pode configurar uma
desproporção e desequilíbrio ilegítimos do ponto vista da equidade processual,
na vertente da igualdade de armas (arts. 20º, nº4 e 18º, nos2 e 3 da
CRP).
Fora dos casos de inversão do ónus
da prova previstos pelo legislador, pode o juiz, no âmbito das suas atribuições
processuais no que diz respeito à descoberta da verdade material, ordenar a
produção de provas capazes de esclarecer acerca do risco, ou da sua
inexistência, da actividade que o operador visa prosseguir (art. 519º, nº1 do CPC;
arts. 1º, nº2 e 17º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto – Lei da Acção Popular).
Não obstante, a parte que alega a
lesão nunca fica dispensada de uma demonstração mínima dos factores de
risco que estarão na sua origem (não basta alegar que há suspeitas de risco). Observando
a importância deste ónus de uma perspectiva diferente, se a lesão do bem
jurídico se tornar numa realidade, será muito complicado ao lesado provar e
obter todas as informações necessárias sobre as causas dessa lesão. Daqui
resulta que a tutela jurisdicional do lesado poderia sair frustrada e
comprometida (cabendo no princípio da precaução, desde que se identifique o
dano e respectivas causas) se não coubesse ao autor da atitude presumivelmente
lesiva o ónus da demonstração de que essa actividade não é adequada a produzir
o prejuízo.
Se, no caso concreto, o julgador
chegar à conclusão de que estão preenchidos os pressupostos de que depende a
concessão de uma providência cautelar (periculum
in mora e fumus boni iuris),
terá, ainda, que proceder a uma ponderação dos interesses em presença, apelando
a parâmetros de equilíbrio e de necessidade (art. 120º, nos2 e 3,
respectivamente, do CPTA). Se, comparando os danos que decorrerão da concessão
da providência com os danos que resultariam da sua não concessão, concluir que
os primeiros são superiores, o juiz deverá recusar a providência cautelar.
No campo jurisprudencial,
temos como exemplo o caso da
co-incineração na cimenteira de Souselas. Em 2006, o Ministro do Ambiente,
do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional emitiu um Despacho
decretando que “o projecto de
co-incineração de resíduos industriais perigosos no centro de produção de
Souselas fosse totalmente dispensado do procedimento de avaliação de impacto
ambiental, ficando a presente dispensa condicionada ao cumprimento integral das
medidas de minimização anexas ao presente despacho”, perante o qual o
Município de Coimbra requereu uma providência cautelar de suspensão da eficácia
do mesmo, acessoriamente a uma acção administrativa especial de impugnação da
sua validade. O TAF de Coimbra concedeu provimento ao pedido, considerando que (1) existia urgência na suspensão do
despacho, uma vez que a co-incineração de resíduos industriais perigosos é
potencialmente perigosa para a saúde pública (apesar de o Ministério e a CIMPOR
terem juntado estudos que excluem a existência de riscos); (2) existia fundado receio da constituição de uma situação de facto
consumado, por serem prováveis lesões para a saúde pública que não se
compadecem com a espera até à prolação da decisão final (apesar de o requerente
não ter oferecido prova do dano de difícil reparação); (3) o princípio da precaução (que, ao contrário da realidade
comunitária ou francesa, não encontra consagração geral no Direito português)
implica uma inversão do ónus da prova, o que se traduz na necessidade de o
Ministério provar a inocuidade da actividade e na dispensa total de
caracterização e sumária demonstração do periculum
in mora por parte do requerente – “Havendo dúvida, a decisão é tomada num
sentido in dubio pro ambiente. Assim sendo, tendo presente que ainda estamos no
âmbito cautelar, estando em causa a prevenção da utilidade de uma eventual e
futura sentença favorável no processo principal, considerando que o que está em
causa na acção principal é apurar se estão reunidos os pressupostos de dispensa
de avaliação de impacto ambiental, cuja função primordial consiste na prevenção
de potenciais riscos para o ambiente e saúde através da avaliação prévia das
eventuais consequências de um determinado projecto ou actividade, ponderando
ainda que a questão a decidir se insere numa área do Direito em que vigora o
princípio da precaução, podemos afirmar que estamos no domínio da “tripla
cautela”, que significa que, em caso de dúvida, o julgador se deve decidir a
favor do ambiente, saúde pública e qualidade de vida”; (4) não se verificavam indícios de falta de procedibilidade do
pedido (uma vez que a inexistência de avaliação de impacto ambiental, único
meio de prova da ausência de lesividade, viola o DL nº 69/2000, de 3 de Maio – art.
1º, nº3, alínea a) e Anexo I, 9 –, sendo que o tribunal, no curto espaço de
ponderação concedido pelo processo cautelar, não pode avaliar a verificação das
circunstâncias excepcionais que
justificam a dispensa, nos termos do art. 3º, nº1 do referido DL); (5) e, por último, que “os danos que poderão resultar do
decretamento da suspensão de eficácia requerida são incomensuravelmente inferiores
aos que podem potencialmente advir da sua concessão” (note-se que ambas as
partes alegavam o interesse na salvaguarda da saúde pública). O TCA do Norte
confirmou a decisão, afirmando que o
periculum se caracterizava pela “impossibilidade
de, uma vez negada a providência, reintegrar no plano dos factos a situação
existente, por ser inelutável que os actos materiais de co-incineração que
hajam tido lugar não poderão ser eliminados por efeito da prolação da sentença
na acção principal”.
Aqui chegados, podemos concluir que
a distinção entre prevenção e precaução, independentemente das
suas diferenças, desagua sempre na tutela, não repressiva ou reactiva, mas sim
preventiva dos bens jurídicos ambientais e sanitários. Assim, a tutela
cautelar reveste suprema importância, talvez mesmo a única capaz de
produzir uma aplicação real e efectiva do Direito, na protecção destes bens de
extraordinário melindre.
·
Bibliografia:
GOMES,
Carla Amado, As Providências Cautelares e
o “Princípio da Precaução”: Ecos da Jurisprudência, II Seminário
Luso-Brasileiro (Direito Público e Privado) promovido pelo NELB, 2007.
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