quarta-feira, 2 de maio de 2012

Os contratos de adaptação ambiental e o princípio da legalidade


1. Enquadramento geral

1.1. A “protecção contratual do ambiente” tem vindo a ganhar entre nós uma relevância progressiva. Assiste-se a uma alteração na forma como o poder político aborda a questão ambiental e, consequentemente, no tipo de instrumentos que podem ser utilizados para executar a política de combate à poluição.

A Administração Pública responsabilizada pela defesa do meio ambiente (convém lembrar que a Constituição coloca expressamente o ambiente entre as tarefas fundamentais do Estado e convém relembrar, ainda, que o direito ao ambiente foi recebido na Constituição com dignidade de direito fundamental) vê-se constrangida a assumir um papel transformador a este nível, no sentido de promover um “ambiente sadio e ecologicamente equilibrado”.

A actuação administrativa no domínio ambiental deixa, assim, de poder limitar-se a uma actuação de mera polícia administrativa para passar a ser-lhe exigido um papel interventivo na promoção da qualidade do ambiente.

Os chamados “contratos de adaptação ambiental”, no essencial, conferiam às empresas dos sectores económicos abrangidos um prazo para se adaptarem à legislação ambiental vigente, dentro do qual não seriam alvo das sanções legalmente previstas para o seu incumprimento, desde que se vinculassem ao cumprimento de um plano de adaptação que era negociado com a Administração.

Um instrumento administrativo de “terceira geração” para a realização de tarefas e direitos (nos quais se inclui o direito fundamental ao ambiente) também eles de “terceira geração”. Procura-se um corte profundo com os instrumentos típicos da Administração liberal: o acto administrativo ablativo, descondicionador ou sancionatório.

A razão principal que leva à disseminação de esquemas contratuais no âmbito da execução administrativa da política de ambiente, em detrimento da mera imposição de normas imperativas através de actos de carácter autorizativo ou, mesmo, sancionatório, está no elevado défice de execução dos comandos legais nesta matéria, em particular dos que impõe limites máximos de emissões poluentes. A administração pública vê-se assim obrigada a ter que “reinventar” os meios através dos quais intervém nas realidades concretas que lhe cabe conformar – responsabilizada legal e socialmente pela obtenção de resultados concretos e visíveis no combate à degradação ambiental.
 
1.2. No entanto, a forma como o fenómeno da contratualização pública em matéria ambiental foi acolhida não pode deixar de originar as maiores dúvidas, quer quanto à eficácia do tipo específico de contratos que a Administração vem celebrando na consecução dos objectivos de redução do nível global das emissões poluentes e promoção da adaptação do sector industrial aos dispositivos legais em vigor, quer quanto a sua compatibilidade com o conjunto de princípios e normas gerais que regulam toda a actividade administrativa, em particular com o princípio da legalidade.

2. Contrato administrativo (de adaptação ambiental) e princípio da legalidade

2.1. O advento do Estado social de direito trouxe consigo a generalização do contrato administrativo em domínios típicos do acto administrativo. Suscita-se a questão de saber se a Administração pode optar pela celebração de um contrato em vez de praticar um acto administrativo apenas quando para tal esteja especificamente habilitada, ou se esta é uma possibilidade genérica.

2.2. Como toda a actividade administrativa, os contratos administrativos estão sujeitos ao princípio da legalidade, nas suas dimensões de preferência e reserva de lei. O art. 278º Código dos Contratos Públicos (CCP) contém uma habilitação genérica para, na prossecução das suas atribuições, as pessoas colectivas administrativas celebrarem quaisquer contratos administrativos, salvo se a lei o proibir ou o contrário resultar da natureza das relações a estabelecer. Embora o art. 278º CCP, não se refira expressamente à alternatividade entre acto administrativo e contrato administrativo, deve entender-se que a habilitação genérica para a celebração de contratos administrativos, decorrente daquela norma, abrange a possibilidade de celebração de contratos substitutivos de actos administrativos (tal é confirmado pelos artigos 287º/1, 310º/1, e 337º/1 CCP que se refere expressamente à figura).

O reduzido grau de determinação desta habilitação normativa não suscita problemas de conformidade constitucional, na medida em que, tratando-se de actividade administrativa consensualizada, as exigências decorrentes do subprincípio de reserva de densificação normativa têm menor intensidade.

2.3. Nota-se nos tempos recentes uma certa angústia por parte da Administração em busca da eficiência administrativa, por estar sujeita aos constrangimentos decorrentes do princípio da legalidade, quer na dimensão que postula uma necessária precedência de lei habilitante, quer na dimensão que a impede de agir de forma diferente daquela que a lei impõe ou mesmo contra ela.
Para a Isabel Moreira, “o princípio da legalidade vai cedendo a favor de um princípio de eficácia. As administrações e não a Administração, têm resultados a cumprir, certas metas a atingir e é esse o objectivo que marca agora a actuação pública. Estes contratos mais não são que isso mesmo, uma consequência visível de um virar de página na história das formas de actuação da Administração.

Resta saber se tal realidade é coadunável com os princípios constitucionais que enformam a actividade administrativa, em particular com o princípio da legalidade.

Em suma, haverá que avaliar o impacto dogmático trazido pelas modernas exigências de eficácia administrativa, de modo a sabermos se é possível a conclusão de que, onde a eficácia postula determinada actuação, a Administração pode agir ao arrepio de uma norma de competência, ou de modo diferente de uma norma de competência.

Repare-se que o problema não tem a ver com a discussão em torno da possibilidade de utilização da forma contratual no exercício do poder administrativo de polícia ambiental. O art. 278º CCP habilita a Administração a celebrar quaisquer contratos administrativos no exercício das suas atribuições, pelo que, havendo uma norma de competência e não sendo a matéria em causa legal ou naturalmente incompatível com a forma contratual, a Administração pode optar por exercer aquela através de acto administrativo ou de contrato administrativo. O problema que se põe é: saber se a Administração pode agir, em nome da eficácia administrativa, sem ser com base numa norma habilitante, ou proceder a uma regulamentação que vá para além do que esta autoriza. E, no que se refere aos contratos, se, nos casos em que a utilização da forma contratual implicar necessariamente uma regulação diferente daquela que é preconizada na norma de competência, ainda assim a utilização do contrato é permitida à luz de considerações de eficácia, mesmo que em detrimento do princípio da legalidade, nas diversas dimensões deste.

Com o assumir de tarefas de polícia administrativa em novas áreas em que se entrecruzam novos interesses públicos fundamentais e novos direitos fundamentais da colectividade e do indivíduo, tem vindo a verificar-se uma evolução ao nível do grau de densidade das normas de competência com base nas quais a Administração é habilitada para o exercício do poder. Este fenómeno, que vem sendo designado na doutrina como uma “crise do princípio da legalidade”, explica-se por vários motivos:

a) Em primeiro lugar, a lei deixou de ter a aptidão intrínseca para limitar o papel da Administração pública a uma mera execução dos seus comandos, ou seja, à estreita realização no concreto de determinadas tarefas geral e abstractamente delineadas pela lei;

b) Por outro lado, a eficácia postula que a Administração tenha uma margem de autonomia face ao comando legislativo na escolha dos melhores meios e dos mais adequados caminhos para a realização do fim público que lhe foi legalmente cometido. Bernardo Ayala assinala, a este propósito “curioso fenómeno de autocontenção legislativa que acaba por conduzir a um acréscimo da margem de livre decisão administrativa”.

Esta constatação implica uma diminuição da própria carga hétero-reguladora da norma legal, no sentido de uma menor densidade normativa que permita uma maior abertura à busca de soluções adaptadas ao caso concreto por parte da Administração.

Em face do exposto e independemente da imposição constitucional de que a Administração só pode agir por expressa habilitação legal que fixe minimamente os pressupostos e os efeitos típicos do poder que lhe é atribuído, resulta claro que o grau de densificação que a norma legal aplica na definição destes elementos tende a diminuir.

À luz do princípio da eficiência, a hétero-determinação legal da conduta administrativa não pode ir tão longe que coarcte a possibilidade da Administração, perante o circunstancialismo com que se depara em cada momento, se socorrer, de forma controladamente criativa, dos instrumentos que considere adequados à obtenção de resultados que, apesar de estarem a coberto da funcionalidade que caracteriza toda a actividade administrativa lícita, terão também que necessariamente comportar dimensões em que se jogam algumas componentes de autodeterminação do que seja o concreto interesse público a prosseguir.

Ora, perante a constatação da crise do princípio da legalidade nos termos que acabamos de referir, a doutrina vai procurar formas de compensar a menor legitimação que a lei pode dar num contexto em que, em vez de determinar, passou a programar e a orientar.

Assim, a legitimação da Administração feita pela lei democraticamente aprovada no quadro de esquemas da democracia representativa, vai cedendo relativamente a uma legitimidade fundada directamente na sociedade, com quem a Administração se relaciona quotidianamente no exercício dos seus poderes através do instituto procedimental, concebido para a negociação, ponderação e conciliação de interesses em presença. Nesta perspectiva, o consenso e o acordo surgem como complementos legitimadores idóneos da menor legitimação trazida pela norma legal.

Por isso mesmo a consagração legislativa de acordos sobre o exercício do poder administrativo representa não apenas uma exigência do princípio democrático (democracia participativa), mas no pleno reconhecimento do particular como colaborador da Administração na prossecução do interesse público.

Nesta medida, se a referida crise de densidade normativa da norma de competência, ao abrir mais espaços de liberdade à determinação pela Administração dos moldes de actuação, instrumentos e resultados a prosseguir vai, naturalmente, favorecer a celebração de contratos que visem determinar o modo de exercer o poder administrativo, também o acordo dos particulares compensa o menor garantismo que a lei assegurava, apresentando, dessa forma, uma inegável vantagem por confronto com o acto administrativo.

É fundamental esclarecer, como refere Mark Kirkby, que o impacto do princípio da eficácia sobre o princípio da legalidade é apenas este e não mais do que este: os imperativos de eficácia administrativa têm conduzido a uma diminuição da densidade normativa, ou da carga hétero-determinadora do comando legal, que confere uma maior autonomia à Administração no momento de escolher os instrumentos e os caminhos para a realização do interesse público definido na lei.

Não obstante, o princípio da legalidade continua a manter um reduto intocável fundado quer no seu papel garantístico dos direitos dos particulares em face do poder administrativo, quer no princípio democrático, que obriga a que toda a actuação administrativa seja relativamente determinada pela lei aprovada pelos órgãos políticos democraticamente eleitos para desempenharem essa função. Nem outra coisa podia deixar de ser no quadro do nosso ordenamento jurídico-constitucional que, designadamente, estabelece expressamente uma relação de subordinação da Administração com a lei e não de mera compatibilidade (art. 266/2 CRP).

Portanto, ali onde a lei contenha uma margem de indefinição relativamente aos pressupostos, aos efeitos típicos e ao fim específico de interesse público da actuação administrativa, que se destina exactamente a conferir uma maior autonomia decisória à Administração e cuja amplitude vem aumentando por consideração ao princípio da eficiência, o contrato revela-se um instrumento útil, por razões de flexibilidade e legitimação, para assegurar elevadas realizações do programa definido pelo comando legal. Já ali onde falha a habilitação legal, ou onde esta defina de forma precisa os parâmetros de regulação da situação concreta a operar pela Administração, não pode esta optar pela autodeterminação, sob pena de ir contra a Constituição.

João Mascarenhas de Carvalho, aluno 18198

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