sábado, 19 de maio de 2012

Os contratos de adaptação ambiental e a tutela procedimental de terceiros


1. Os contratos de adaptação ambiental e a tutela procedimental de terceiros

1.1. Enquadramento geral

A “protecção contratual do ambiente” tem vindo a ganhar entre nós uma relevância progressiva. Assiste-se a uma alteração na forma como o poder político aborda a questão ambiental e, consequentemente, no tipo de instrumentos que podem ser utilizados para executar a política de combate à poluição.

A Administração Pública responsabilizada pela defesa do meio ambiente (convém lembrar que a Constituição coloca expressamente o ambiente entre as tarefas fundamentais do Estado e convém relembrar, ainda, que o direito ao ambiente foi recebido na Constituição com dignidade de direito fundamental) vê-se constrangida a assumir um papel transformador a este nível, no sentido de promover um “ambiente sadio e ecologicamente equilibrado”.

A actuação administrativa no domínio ambiental deixa, assim, de poder limitar-se a uma actuação de mera polícia administrativa para passar a ser-lhe exigido um papel interventivo na promoção da qualidade do ambiente.

Os chamados “contratos de adaptação ambiental”, no essencial, conferiam às empresas dos sectores económicos abrangidos um prazo para se adaptarem à legislação ambiental vigente, dentro do qual não seriam alvo das sanções legalmente previstas para o seu incumprimento, desde que se vinculassem ao cumprimento de um plano de adaptação que era negociado com a Administração.

A razão principal que leva à disseminação de esquemas contratuais no âmbito da execução administrativa da política de ambiente, em detrimento da mera imposição de normas imperativas através de actos de carácter autorizativo ou, mesmo, sancionatório, está no elevado défice de execução dos comandos legais nesta matéria, em particular dos que impõe limites máximos de emissões poluentes. A administração pública vê-se assim obrigada a ter que “reinventar” os meios através dos quais intervém nas realidades concretas que lhe cabe conformar – responsabilizada legal e socialmente pela obtenção de resultados concretos e visíveis no combate à degradação ambiental. 

A pertinência desta abordagem resulta reforçada pelo facto de o fenómeno da contratualização administrativa em matéria ambiental no nosso país ser muito mais o resultado de um impulso proveniente da prática administrativa do que do legislador. De igual modo, a forma como a prática administrativa e as previsões normativas específicas concebem o procedimento de formação destes contratos reclama uma especial atenção acerca da sua compatibilidade com as normas gerais, nomeadamente de índole constitucional que regulam o procedimento administrativo enquanto instrumento de garantia da participação dos interessados na formação da vontade administrativa.

1.2. Procedimento para a celebração de contratos administrativos

Os contratos de adaptação ambiental versam sobre realidades em que se verifica uma tensão e se reclama uma concordância prática entre valores e direitos constitucionalmente protegidos. Valores e direitos, estes, de natureza conflituante (designadamente, a liberdade de iniciativa económica privada, o princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança e o direito fundamental ao ambiente).

Relacionam-se e colidem, aqui, posições jurídico-subjectivas ligadas ao ambiente. [Ambiente] De particulares terceiros ao contrato (mas que são partes nas relações jurídicas multilaterais que aqueles geram), legitimidades difusas derivadas e associadas ao ambiente como um bem jurídico objectivo que toda a colectividade tem o dever de proteger.

Neste contexto, interessa avaliar se no caso dos contratos de adaptação ambiental, o seu específico procedimento de formação é compatível com as regras procedimentais gerais que se destinam a concretizar o direito fundamental à participação de todos os interessados ao procedimento de formação da decisão administrativa, para tutela antecipada dos seus direitos subjectivos e interesses legítimos.

Em Estado Social de Direito, o procedimento é tido como o instrumento ideal de tutela preventiva e de harmonização dos diversos interesses públicos em presença e dos direitos e interesses dos particulares susceptíveis de serem lesados pela actuação administrativa, nomeadamente, daqueles que não são os destinatários directos dessa actuação.

A actividade contratual da Administração não foge à regra da procedimentalização da actividade administrativa em geral. A procedimentalização da actividade administrativa é hoje quase total: todos os actos, regulamentos e contratos da Administração devem necessariamente ser antecedidos, e executados através, de procedimentos administrativos de maior ou menor complexidade. O fenómeno da procedimentalização é, actualmente, uma das marcas distintivas do direito público e, em particular, do direito administrativo. Enquanto no direito privado a autonomia privada abrange, em regra, não só a conformação do conteúdo e do objecto dos negócios jurídicos como a do seu próprio processo de formação e implementação, no direito público a procedimentalização da actividade administrativa reduz ou elimina a autonomia pública da Administração Pública naquelas matérias, envolvendo por isso a sua subordinação ao direito em termos qualitativamente distintos dos vigentes nas relações interprivadas.
Isto significa que a celebração de contratos administrativos é, em regra, precedida de um procedimento administrativo, designado procedimento pré-contratual. Este aspecto é um daqueles em que a actividade contratual da Administração mais se distingue da actividade contratual dos particulares: embora a autonomia privada admita a subordinação de contratos interprivados a um procedimento prévio, tal resultará do consenso das partes e não de uma mera imposição jurídica.

Este problema da tutela dos direitos subjectivos e interesses legítimos de terceiros que possam ser afectados pelos contratos que têm por objecto o exercício do poder administrativo, tem preocupado a doutrina, sobretudo a estrangeira.

Nos contratos com objecto passível de acto administrativo, os terceiros relativamente aos quais se coloca o problema da tutela são, virtualmente, todos os administrados cujos direitos ou interesses tenham conexão com a situação jurídica multilateral que se desenvolve a partir da abertura do procedimento pré-contratual. A principal questão que se tem colocado a este propósito é a de saber como garantir que um instrumento de produção de efeitos de direito de natureza bilateral não prejudique os direitos de quem nele não tem intervenção constitutiva.

O CPA não fez acompanhar as inovações relativas à autonomia pública contratual de nenhuma norma que expressamente se dirigisse à tutela de terceiros. Esta opção é de fácil compreensão se pensarmos que os direitos subjectivos dos particulares que se relacionam com a administração não variam consoante a natureza jurídica dos instrumentos por que esta entende exercer os seus poderes administrativos. Com efeito, o problema que se coloca não se reduz ao da tutela de terceiros ao contrato, antes tem a ver com os mecanismos de tutela dos particulares relativamente ao exercício do poder administrativo, independentemente da forma por que este é exercido. Pelo que, a resposta à necessidade de tutelar direitos subjectivos de terceiros, na fase de formação dos contratos administrativos deste tipo, basta-se, à partida, com a prescrição legal de que a celebração destes deve ser precedida do procedimento que o CPA prevê para a produção de actos administrativos.

A tutela de terceiros deve fazer-se, em primeira mão, no âmbito das normas procedimentais que salvaguardam o direito de participação de todos os interessados no procedimento, para defesa dos seus interesses. No quadro desta solução, os terceiros podem reagir procedimentalmente e contenciosamente contra os contratos nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos com que poderiam reagir contra um acto administrativo com um conteúdo análogo.

Isto implica que todas as vinculações jurídico-procedimentais associadas à produção de um acto, mormente as relativas aos direitos de participação dos interessados para tutela dos seus direitos e interesses, se aplicam de igual modo à formação da decisão de contratar pela Administração.

Os contratos de adaptação ambiental tem vindo a ser celebrados sem qualquer preocupação em identificar interessados de notificação obrigatória, ou seja, aqueles que, nos termos do art. 55º/1 CPA, porque podem ser lesados pelos contratos a celebrar no termo do procedimento, devem ser notificados do seu início quando este é aberto oficiosamente, desde que possam ser nominalmente identificados.

Estes interessados de notificação obrigatória, no que se refere o direito fundamental ao ambiente, poderão ser particulares que sejam “vizinhos ambientais” de empresas aderentes aos contratos. Não nos referimos a todos e quaisquer “vizinhos” de empresas poluentes aderentes aos contratos, porque muitas vezes será difícil identificar quais as populações vizinhas que poderão ser afectadas por determinada medida administrativa nesta matéria ou porque há um número elevado de interessados que torna impossível a sua identificação imediata. Mas situações haverá em que os pressupostos da notificação obrigatória serão de verificação evidente.

Mas, também, poderão ser interessados as associações de defesa do ambiente que sejam representativas dos interesses que podem ser lesados pelos contratos, para quem defenda que a actuação destas associações se faz para defesa de interesses próprios, que são personalizados a partir do princípio da especialidade.

Poderá dizer-se que o problema que aqui é colocado não é um problema de insuficiência do ordenamento jurídico, no desenvolvimento que faz do direito fundamental de participação procedimental dos administrados, mas tão só de incumprimento das regras gerais nesta matéria?

Mark Kirkby, é da opinião de que, quando a actividade administrativa se move directamente na área ambiental, no desenvolvimento de políticas que podem contender com um número elevadíssimo de titulares de direitos subjectivos públicos contrapostos e que contendem necessariamente com os bens jurídicos cuja salvaguarda constitui o objecto social das associações ambientalistas, deve haver um mecanismo geral e complementar de obrigatoriedade de notificação pública de todos os interessados, quer necessários, quer eventuais (para além dos mecanismos de notificação obrigatória individual já consagrados). Propõe, o autor, uma revisão da Lei de Acção Popular no sentido de o art. 4º incluir os contratos-programa sectoriais na área do ambiente, equiparando-os aos planos referidos no nº1 do preceito, sujeitando-os assim, ao anúncio público previsto no art. 5º.

Algo tem que ser feito. A inexistência de mecanismos rígidos dirigidos a fomentar a participação procedimental dos interessados, é desaconselhável. Ainda para mais quando estamos na presença de matérias em que se entrecruzam uma multiplicidade de interesses públicos e privados contrapostos que exigem ponderação. A própria estrutura do esquema contratual impede, à partida, a possibilidade de os interessados intervirem no procedimento de formação contratual, o que, inclusivamente, lança fortes dúvidas sobre a constitucionalidade das respectivas previsões normativas.

2. Como podem os terceiros reagir face a uma eventual lesão dos seus direitos e interesses derivada de um contrato de adaptação ambiental?

2.1. Destacabilidade dos actos unilaterais pré-contratuais

Uma vez qualificados os contratos de adaptação ambiental como contratos administrativos, aplicam-se-lhes as normas legais referentes aos contratos administrativos.

De um modo geral, a tutela de terceiros ao contrato relativamente à legalidade deste faz-se no quadro da teoria do acto destacável, abrindo-se a possibilidade de estes impugnarem, contenciosamente, actos administrativos destacáveis, prévios à celebração do contrato.

A verdade é que apesar da crescente relevância, prática e teórica, do contrato administrativo, este não dispensa a prática de actos administrativos. A dependência do contrato administrativo em relação ao acto administrativo revela-se sobretudo em sede de procedimentos administrativos respeitante à formação e à execução dos contratos. Por exemplo, invalidade dos actos administrativos pré-contratuais de que depende a celebração do contrato envolve, em regra, a invalidade consequente deste (art. 283º CCP). [ver ponto 2.2.1. b)]

Os actos administrativos com eficácia externa e imediatamente lesivos, praticados no decurso dos procedimentos de formação e de execução dos contratos administrativos são geralmente designados de actos destacáveis. Isto significa que não se dissolvem no próprio contrato, antes mantendo autonomia funcional em relação àquele, designadamente para efeitos de impugnação jurisdicional.

Existem duas formas distintas de encarar a relação entre os actos unilaterais pré-contratuais da administração e o próprio contrato: para a teoria da incorporação, os actos pré-contratuais dissolvem-se no contrato e, como tal, só são impugnáveis através da impugnação deste; para a teoria da destacabilidade, os actos pré-contratuais são autónomos do contrato para efeitos de substantivos e processuais, podendo, designadamente, ser impugnados separadamente em relação àquele e mesmo antes da celebração do próprio contrato.

Actualmente, em face da garantia constitucional de impugnação de actos administrativos e regulamentos lesivos (art. 268º/4 e 5 CRP) e à luz da expressa consagração legal de impugnabilidade autónoma de actos unilaterais pré-contratuais, inclusivamente com a natureza de simples actuações administrativas (art.100º CPTA e 269º CRP), é indiscutível que os actos pré-contratuais são para todos os efeitos actos destacáveis em relação ao contrato que venha a ser celebrado.

É neste sentido que o Sérvulo Correia louva a vantagem de “fazer preceder a conclusão do contrato administrativo de um procedimento segundo termos pré fixados na lei que compreendam a emissão de um ou mais actos administrativos cuja impugnabilidade permita a defesa contra a recusa de contratação, contra a desigualdade de tratamento e também contra (…) a decisão de contratar em termos ilegais”.

A nossa ordem jurídica acolhe a teoria do acto destacável não só pelo que foi dito, mas também porque se admite expressamente a recorribilidade de actos destacáveis, quer na formação, quer na execução dos contratos.

2.2 Desvalores do contrato administrativo

2.2.1. Os artigos 283º/1 e 2 e o artigo 284º/1 e 2 do Código dos Contratos Públicos referem, como desvalores do contrato administrativo inválido, a nulidade e a anulabilidade. Para a delimitação dos respectivos âmbitos de aplicação é necessário distinguir entre as situações de vícios próprios e as de vícios consequentes dos contratos.

a) Quanto aos vícios próprios, os contratos administrativos celebrados com ofensa de princípios ou normas injuntivas são anuláveis (art. 284º/1 CCP); são, todavia, nulos, nas mesmas situações em que o respectivo vício determinasse a nulidade de um acto administrativo, por aplicação analógica do art. 133º do CPA. As causas de invalidade por falta e vícios da vontade nos contratos administrativos são regulados pelo código civil.

b) No que diz respeito aos vícios consequentes, a regra vigente em matéria de invalidade consequente do contrato é a do paralelismo dos desvalores: os contratos administrativos são nulos ou anuláveis consoante sejam nulos ou anuláveis os actos procedimentais de que haja dependido a sua celebração (art. 283º/1 (1ª parte) e 2 CCP).

A anulabilidade consequente do contrato pode ser desconsiderada, por decisão judicial/arbitral, quando a anulação seja desproporcionada ou contrária à boa-fé, tendo em conta a ponderação dos interesses públicos e privados em presença e a gravidade do vício do acto pré-contratual em causa, ou quando se demonstre inequivocamente que o vício não implicaria uma modificação subjectiva no contrato celebrado nem uma alteração do seu conteúdo essencial.

2.2.2. Ainda que não se consiga descortinar com clareza um acto destacável prévio à celebração do contrato de adesão, o problema tem a mesma resposta e esta é-nos dada a partir da doutrina e jurisprudência fracesas: o princípio do Estado de Direito e da tutela judicial efectiva impõe que todos os contratos da administração sejam inevitavelmente precedidos ao menos de um acto administrativo contenciosamente sindicável, cuja existência se depreende, em última análise implícita na própria celebração do contrato. Ou seja, ainda que não esteja previsto na lei um acto expresso prévio à celebração do contrato, depreende-se que terá que ter existido um, que está implícito no facto de a Administração ter celebrado o contrato: o da própria decisão de contratar.

Assim, quem descortine nos contratos de adaptação ambiental uma invalidade e tenha legitimidade processual pode atacar contenciosamente, quer o contrato-quadro, quer os contratos de adesão, através de uma acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo. Ou na sua ausência (de acto administrativo), contra o acto administrativo implícito que é a decisão de contratar, para o qual se projectam os vícios dos contratos, já que estes têm necessariamente que ser reportados à decisão administrativa que determinou a concreta configuração que os contratos vêm a assumir.

3. Que terceiros podem reagir contra os contratos?

No ponto anterior deixou-se claro que os terceiros aos contratos de adaptação ambiental, que para isso tenham legitimidade, devem poder reagir contenciosamente. Pretende-se agora, ainda que em termos sintéticos, abordar o problema da legitimidade processual activa de terceiros, para efeitos de impugnação do acto administrativo.

Quanto à legitimidade activa de terceiros que actuem, não para defesa de interesses próprios, mas para defesa objectiva de interesses gerais, encontramo-la bem fundada na lei 83/95, de 31 de Agosto, a lei de participação procedimental e acção popular.

A Lei de Acção Popular vem alargar a legitimidade processual activa a quem não tem interesse directo na demanda – e que, portanto, não pode reagir contenciosamente com base nos mecanismos de legitimidade para tutela subjectiva dos seus direitos e interesses acima referidos -, para defesa contenciosa de um conjunto de bens jurídicos de interesse geral ou comunitário, entre os quais se conta o ambiente (art. 1º/2), designadamente a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos e às associações defensoras de tais interesses (art.2º/1).

Por seu turno o art. 12º da Lei esclarece que este mecanismo de legitimidade compreende, quer o recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos lesivos, bem como “a acção para defesa desses interesses”. Esta acção é, naturalmente, qualquer acção que, estando prevista no ordenamento processual-administrativo, se revele necessária, ou mesmo útil, na tutela dos interesses referidos no artigo primeiro, entre as quais se terá que incluir a acção de invalidade dos contratos, quando a actuação pública lesiva de tais interesses se desenvolva através de um contrato administrativo ilegal.

Em face do exposto, uma conclusão há a tirar, no que concerne aos contratos de adaptação ambiental: que, quaisquer cidadãos ou associações de defesa do ambiente podem reagir contra actos destacáveis do procedimento de formação dos contratos para defesa objectiva do interesse público, através de acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo, com base na legitimidade que lhes é conferida no art. 12º/1 da Lei de Acção Popular.

João Mascarenhas de Carvalho, aluno 18198

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